terça-feira, outubro 24, 2006

Facada sentimental


Foi de dia, um dia lindo daqueles em que o verão canta cheio de cigarras, e que a briza do mar chega no rosto com sensação de beijo na boca. Fiz sinal pro ônibus. Como sempre tive que estirar o passo, já que o motorista vinha a mil e a freada escapou do ponto. Quando passei pela roleta pensei que o verão podia ser eterno, que aquela luz ofuscante de vida podia entrar sempre por aquelas janelas encardidas, que a luz, sendo invenção de Deus, podia seguir descoberta, sem nuvens, sem brumas, luz eterna.

Sentei tranquilo, olhando a cidade passar lá fora como criança travessa. Minha cidade parece sempre estar feliz. Sei que isso não passa de engano. Não me detenho nas suas feridas e me tapo os ouvidos quando me grita sua violência. Se mostra sua boca banguela e fedorenta, sigo olhando a paisagem, quase menino, igual quando saia lendo para o meu pai todos os letreiros de loja e as propagandas pelo caminho. Sentia cheiro de subúrbio.

E no meio da infância, perdido na memoria do lotação 455/Copacabana-Méier, senti a ponta de um canivete me despertar na altura do baço. Aquele filho da puta, arisco como uma ratazana, chegou sem que eu me desse conta da arapuca. E virei presa fácil. Não tive coragem nem de olhar nos olhos dele. Perguntei baixinho: " Você quer furar o meu baço, o fígado ou prefere o meu pulmão?".

Bandido que fica com medo é bandido mais perigoso. E eu sei que dei um nó na cabeça dele. Me respondeu: " Não sei freguesia, tenho que parar pra pensar. Você fuma? " Foi quando descobri que eu já estava morto. Por que não era possível que a gota de suor que escorreu pelo rosto do bandido, e se esborrachou no chão do ônibus, fizesse todo aquele ruido, quase como uma bomba d´água espatifando líquido por toda a cidade. O barulho tenso daquela gota não parava de ressonar na minha cabeça. E porque queria saber se eu fumava? Se era pra me matar, que diferença fazia? Bandido que é bandido não sabe o que é filantropia nem tem sentido humanitário! Pra transplante não era, nem pra venda de órgãos. Porque essa curiosidade de baitola na hora da minha morte, porra?

Era isso, eu já estava morto por uma canivetada no pulmão, e talvez também por outra nas costas, na altura da nuca, ultimo ato da fuga apressada. O cheiro do sangue me dava náuseas, vinha a vontade de vomitar. Foi quando o bandido me chamou outra vez pra vida, dizendo: "Passa a carteira e o relógio, mas sem dar pinta. Se não eu te furo, freguesia!" . E então renasci! Olhei pra ele, e sem pensar em nada que não fosse acertar de vez minhas contas com o patrão do céu, lancei um apelo ultimo e definitivo: " Amigo, lhe vou a pedir um favor. Já que o verão não pode ser eterno e que as brincadeiras dessa cidade escondem tanta merda e miséria, crava isso no meu peito, e sai daqui com mais um na tua lista. A porra da carteira é minha e o relojo também é meu. E não vou dar de graça porra nenhuma pra você, falou? " .

O dia realmente era lindo, cheio de sol, com a briza do mar tocando no meu rosto feito beijo na boca. Acho que o ladrão vivia dentro de mim e jamais sentou do meu lado no lotação. Nesse verão preciso redobrar o cuidado com a minha própria sombra. E ao menos ao meio dia, com o sol a pino e pisando vertical minha imagem de homem de bem, poderei respirar aliviado sem medo do ladrão.