segunda-feira, outubro 30, 2006

Cristina e as jaboticabas

 

Acho que me passei no uísque. Descobri assim que o garçom trouxe a conta, e me entrou uma vontade tremenda de sair daquele lugar cheio de gente chata e superficial. Eu precisava respirar, renovar o que fosse pra acabar com aquele enjoo. O mundo se embaralhava e a minha volta tudo se transformava num pacote só: vomitar!
 
Cristina era mais que uma amiga. Era uma mulher com quem eu podia dividir a cama, sem ter que acordar no dia seguinte e justificar que cada um tomaria seu rumo, sem culpas nem rodeios. Pedi que ela levasse o carro. A verdade é que eu me arrebentaria a cara na primeira árvore que encontrasse pelo caminho. Ela me dizia: " Abre a janela e vomita, vai te fazer bem, mané!". Mas eu fingia não escutar, acho que por vergonha. Isso foi antes de apagar.

 
Ainda não eram as 9. Acordei com a cabeça pesando toneladas. Acendi um cigarro na beira da cama, evitando a claridade que o verão já vomitava pela janela. Olhei as coxas da Cristina, largadas como deserto até a altura da marca do biquini. Me passou pela cabeça escorregar por debaixo do lençol. Eu sabia que Cristina gostava de acordar assim, com meu desejo esquentando por detrás sua preguiça de fêmea dengosa. Mas acabei saindo do quarto como um gato pisando veludo. Cristina seguiu dormindo. 

 
Quando entrei na cozinha só pensava em café. As mulheres têm uma maneira curiosa de organizar seu mundo. Passei quase dez minutos buscando o maldito pó. Cheguei a pensar que o melhor seria ir embora de estomago vazio. Talvez me debruçar no balcão gorduroso de um boteco qualquer, pedir uma media e tragar um cafe vagabundo, evitando descobrir um detalhe a mais na minha intimidade com Cristina. Quando por fim encontrei a caixinha de metal do cafe, me dei conta que descobrir a alma de uma mulher passa por investigar suas pequenas tramas diárias, seus frágeis cenários, suas dissimulações adoravelmente sedutoras. Tudo como se a vida fosse um eterno jogo de bonecas. Cristina era uma mulher importante pra mim, me provocava essas sensações especiais, coisas que me equilibravam como homem e como amante. Reconsiderei meu destino e fiz o cafe!

 
Meia torrada com queijo de minas e o cafe me bastaram. Tinha na boca um gosto de figado, e na cabeça a consciência de que com o passar dos anos a cirrose podia acabar comigo. Foi quando o sonho que tive depois da bebedeira se descarregou como um flash. Não tinha ideia de como havia chegado ali. Nem do que havia feito, sair do carro, entrar no edifício e no elevador, ficar pelado ou ser violado por Cristina. Quando dizem que cu de bêbado não tem dono, sou forçado a pensar que a pica tao pouco. E isso não tem nada que ver com abuso, ao contrario. Me excitava a sensação que Cristina havia podido arrancar de mim algum prazer que compensasse o meu estado tao desagradável. Não me recordava de nada, mas do sonho sim. Vinha claro como se o tivesse vivido de verdade. Era assim...

 
"A jabuticabeira estava carregada. Soprava um vento tremendo e o chão era um mundo de bolinhas pretas. Tinha sete anos, não mais. A lembrança da ultima festa de aniversario vinha adornada por um bolo da Kibon, novidade meio bolo, meio sorvete, todo cravado com umas bandeirinhas com desenho do urso polar da Kibon. Isso nada tinha que ver nem com as jabuticabas, nem com o vento que salpicava tudo de negro. Passei pelo viveiro de pássaros, estilo inglês, enorme para as minhas vistas de menino. O chafariz de ferro, no centro da gaiola gigante, era disputado por pardais, canários, papagaios y rolinhas vagabundas que assumiam um certo ar nobre naquele pequeno cenário aristocratico.

 
Trinta anos depois voltei ai para rever a jabuticabeira e o chafariz. Já não estavam mais. E a casa guardada na memoria de infância tao pouco. Tudo havia desaparecido, dando lugar a uma caixa verde água, com grades por todas partes e plantas atificiais. Acho que por dentro eu chorava, buscava no tempo um sorriso com gosto de fruta madura, um canto à primeira hora da manha, uma foto de carnaval pendurado de índio naquela jabuticabeira balançada pelo vento. Despertei de minha tristeza com a buzina chamando para que eu voltasse para o carro. Era hora de ir embora.

 
Já são quase 10. Cristina acaba de entrar na cozinha. Eu já não penso mais na minha infância e voltei a dividir a manha de domingo com meu figado chumbado. Estava linda, meia cara amassada e o cabelo revolto de travesseiro. Cristina sabe o quanto me alucina que ande pela casa só de calcinha. Acho que pensa em voltar para a cama. Beijarei sua boca com gosto de cafe e vodka, e me entregarei a ela com sonhos de jabuticabas.