NARRATION







Tudo na caixa de molho de tomate
por Zé Peixoto, all rights reserved ©



Bilhetinho para acabar

Porque você bateu com a porta daquele jeito, Clarissa? Eu não me encontrava bem e você sabia, me incomodava quase tudo, sem tino e incapaz de suportar qualquer movimento que me deslocasse um milímetro do eixo. A isso chamo arrogância, não tenho outra palavra. Quando alguém se encontra como eu naquele dia, fica difícil engendrar generosidade para aceitar qualquer intromissão no silencio que te protege do medo. Não é hora de dissimular, nem tentar cobrir o sol com a peneira. O que você fez foi horrível e acho melhor a gente colocar um ponto final nessa nossa historia. Se não te disse nada na hora foi porque não havia maneira de encontrar forças, ou quem sabe achei melhor não provocar nenhuma situação violenta que me deixasse ainda pior do que eu já estava. Pedi à Maria faxineira que coloque todas as tuas coisas numa caixa, ordenadas o melhor possível pra que você não me atire na cara, mais uma vez, que eu sou um desordenado e sem nenhum sentido quântico. É verdade, nunca me importaram os detalhes, odiava as aulas de química e biologia, nunca vi sentido lógico por detrás dos microscópios. Gosto da imensidão, do vazio que me provoca no estomago olhar a via Láctea, ou admirar a Lua minguante do balcão do meu apartamento. Mesmo que eu vista a carapuça que a minha vida sempre foi um armário com tudo empilhado, sem haver maneira de colocar ordem no que quer que fosse, não estou para enfrentar outra vez esse tipo de comentário. Com o tempo tentarei organizar minhas coisas, pouco a pouco, mas à minha maneira, sem ninguém se intrometendo com o que eu devo ou não devo fazer. Começo pela tua caixa, e espero que não te importe que seja uma dessas de supermercado. Tento só facilitar as coisas, as minhas é claro, preciso recuperar ao menos um respiro de auto-estima. Sei que tudo pode parecer para você acriançado,  mas já nem isso me importa mais, chegou a hora de cada um ser livre de pensar o que quiser. Aproveitei que tinha insônia, e revisei ontem mesmo todos os recibos do banco e a nossa conta conjunta nos dois cartões de crédito. A viajem a Nova York foi fantástica, mas não se esqueça que grande parte do buraco veio das tuas mãos, ou melhor, dos teus pés, com essa mania desbaratada de sempre sair comprando sapatos. É para que você veja como somos diferentes! Eu com meu armário feito uma trincheira abarrotada de corpos mutilados, já em estado de putrefação moral avançada, e você disfarçando com água de colônia as tuas cinqüenta mil sapatarias, de todas as cores, de modelos abertos e fechados, de couro, de palha ou de pano, com saltos baixos, plataformas e pontas de agulhas, algumas com mais de sete e meio por causa do teu complexo de baixinha. Com a convivência, a gente acaba absorvendo quase tudo um do outro, a faceta boa e também a parte podre. E nem faz tanta diferença se a gente vive colado o tempo todo, ou se a formula é escovar os dentes juntos só nos finais de semana. Ao menos nisso acho que acertamos na decisão. Você pode imaginar o que poderia ter sido se houvéssemos assinado algum papel diante de um juiz? Ou se por carência afetiva, tentando dar satisfação à família e aos amigos mais íntimos, tivéssemos subido a um altar e jurado amor eterno diante de um padre, que ainda por cima, ao cabo de alguns anos, poderia estar acusado de envolvimento em algum escândalo de pederastia? Acho que você também devia dar graças a Deus de ter escapado dessa, com certeza hoje tua historia nessa casa não caberia numa caixa de molho de tomate. Ou possivelmente quem sairia pela porta seria eu, mesmo que o nosso teto fosse fruto da minha herança, e a cama e os moveis de quarto, assim como o espelho bisouté do corredor e as peças de decoração que você sempre menosprezou de trastes, fizessem parte da história da minha família, desde que foram estreadas pelos meus avós quando voltaram da lua de mel em Petrópolis. Teu argumento seria imbatível e eu sairia calado pela porta, o rabo entre as pernas e com pouco mais que um par de livros, a escova de dente esmerilhada e o aparelho de barba, aquele que você toda a vida ironizou como démodé e parecido com a navalha do Gepeto. Com tantos sapatos nessa casa, seria complicado você encontrar outro armário para guardar teus quilômetros de solas com pouco gasto. Por mais que você possa dizer que não, estou seguro que seria assim.  No começo tudo tem graça, a gente ri a toa por qualquer bobagem. Parecia divertido quando você dizia invejar a Imelda Marcos pela coleção de sapatos dela. Jamais te diria na cara, mas já faz tempo que me provoca náuseas imaginar que você e ela, ao menos nos pés, sejam tão encaixadas como unha e carne. Sabia que até tentaram matar essa mulher? Foi com dinheiro roubado, e a custa de muita porrada em gente inocente, que a cara metade do ditador filipino teve tempo e dinheiro para viver só pensando em comprar sapatos. Claro que quando falo de você, minha querida,  me refiro à outro tipo de desvio de caráter, e qualquer critica fica restrita ao pessoal de cama , mesa e banho, jamais pensei que você não fosse honesta e trabalhadora. Também acho que você é amiga dos teus amigos, que apesar de poucos, parecem não ver inconveniente algum na tua forma arrogante, e na maneira pouco respeitosa como você desqualifica permanentemente o problema alheio, as coisas para você sempre podiam ser piores. É que o calo só aperta no teu pé, o que sofre ou perturba o outro é coisa de novela, passa com uma aspirina americana “extra strength” e umas rodelas de pepino na testa, se por acaso a cabeça ficar a ponto de estourar. E te juro, não me faltaram motivos para perder a finura nesses anos que dividimos a cama de sexta a domingo. Você pode imaginar as barbaridades que me passavam pela cabeça? Como você acha que eu me sentia quando tinha que engolir em seco, já vestido para ir ao cinema, você revirando tua sacola “d’amour de weekend” sem encontrar um escarpin marinho que você havia esquecido no teu mausoléu de sapatos? O que eu podia fazer depois com você totalmente histérica, visto que a única opção que te sobrava, continuamente precisava demão de graxa para evitar passar vergonha na fila do Roxy? Com paciência de Jó, Clarissa, eu pagava o pato caladinho e manso, esfregando o couro quase novo do sapato até chegar ao brilho que te fosse mais confortável. Algum dia você parou para imaginar o martírio de limpar as minhas unhas com escovinha, como se eu fosse um engraxate do Largo do Machado? E o que te parece me resignar calado com o punho da camisa social sempre com uma mancha conjugada com a cor da cera do teu sapato? Se eu pudesse voltar no tempo, propunha que você, minha querida, deixasse sempre guardado no meu armário o sapato com o salto mais fino da tua coleção.  Na primeira que eu passasse pelo papel de engraxate, e a gente perdesse a hora do cinema, acabando evidentemente sem nenhuma outra opção que não fosse assistir a qualquer merda pela televisão - e se é mentira, quero que me caia agora um raio encima - não pensaria duas vezes em sair metendo sapatadas sem parar na tua cabeça com o maldito salto fino, até abrir o teu crânio e ver os teus miolos soltando fumaça. O melhor mesmo é não pensar mais no que passou. Isso já feneceu como roseira sem molhar no jardim, e agora só quero que a Maria faxineira coloque na caixa de papelão do Pão de Açúcar, cada coisa que me faça lembrar que algum dia você fez parte da minha vida. E que a partir daí, depois que você recupere as tuas bugigangas com o porteiro do prédio, eu possa te apagar de uma vez por todas da minha vida. Eu algum dia disse que você tem chulé, Clarissa? Pois sim, o Polvilho Anticéptico Granado não te serve para nada. Com a pouca consciência do que você pode provocar de sinistro na vida de alguém, seguro que nunca te passou pela cabeça que o teu chulé, de segunda a quinta, ficasse impregnado em cada cantinho da minha casa. Para que você tenha uma idéia, eu até pedi à Maria que trocasse a marca de desinfetante de assoalho, só para tentar que o teu cheiro não me perseguisse como uma alma penada durante o resto da semana. Tão elegante, altiva, mas com chulé de gentinha. Claro que também me cortei de te explicar esse detalhe, seria o mesmo que acabar com a relação, você ofendida e ironizando o desproposito da minha acusação, visto a fortuna que você sempre gasta cada mês, tratando dos teus pés no Doutor Scholl. Acho que a Maria tentou ao menos umas duas ou três marcas diferentes de desinfetante, mas nenhum deu resultado. Para você ver como é a vida, sofri muito calado. 




O Alfredo me chamou de madrugada

Chamar alguém por telefone no meio da madrugada, sem que seja caso de vida ou morte, é no mínimo uma invasão de privacidade. Lá sabe a pessoa se o sujeito teve um dia pesado, e precisa dormir direto para na manhā seguinte ter forças de enfrentar o batente? Pois tem gente que liga o automático e faz esse tipo de barbaridade. Eu fiquei no computador até tarde, o argumento do documentário precisava estar pronto até quinta pela manhā, e ainda não havia acabado de pesquisar por Internet a íntegra do discurso que Mahatma Gandhi fez em Londres, em 1931. Não sei por que cargas d´água a máquina ia tão lenta, cada descarga de página demorava uma eternidade. As operadoras telefônicas vivem prometendo um mundo de maravilhas, transmissão galáctica de dados, mas na hora do vamos ver, tudo é lento, lento ao ponto de dar nos nervos. Já passava das duas quando desliguei a torre e me atirei no sofá cama da sala. A preguiça me impedia de arrumar a pilha de roupas estacionada para lavar em cima da cama. Pois foi começar a pegar no sono e toca o telefone. Primeiro pensei na minha mãe, morreu de repente, e deve ser algum parente para dar a noticia de onde velam seu corpo, e que providencias já foram tomadas para que eu não precise me preocupar com praticamente nada. A sensação de culpa veio amplificada por uma bomba de adrenalina. Pronto! Mamãe morreu e agora vão me acusar de ser um filho desnaturado, de nunca haver me importado se a pobre mulher precisava de alguma coisa, se tomava os remédios para hipertensão na hora certa, se forçava demasiado as cervicais com as sacolas do mercado, ou se simplesmente havia esquecido de alguma coisa estragada na geladeira. São essas sensações que ruminam o coração da gente em questão de segundos.  Tudo explode com um ring-ring-ring no meio da noite, e você se sente pelado de alma, cheio de remotas incriminações. Pois era um tipo chamado Alfredo, de voz melosa e expressões de amabilidade duvidosa. As desculpas que me dava não me importavam um caralho, cheio de dedos por me importunar àquela hora, por me acordar sem ter nada de urgente a comentar. Parecia mais um vendedor de enciclopédia Barsa, que eu nem sei se ainda existem, mas que são o protótipo de qualquer cara pentelho que sempre discursa como disco arranhado o mesmo bla-bla-bla. Minha reação foi de barraco, sem constrangimento de ser grosseiro ao exigir que se identificasse.  Já que não reconhecia a voz, nem entendia do que  se tratava, o primeiro que me ocorreu foi que alguém estivesse me controlando, manipulado por Clarissa.  Do outro lado da linha, com uma reação cada vez mais desconcertada, o individuo se entrecortava por atropelos de alguém que na infância seguro teve problemas com a gagueira,  um tal Alfredo, dando voltas feito peão, repetindo meu numero de telefone, e seu nome com sobrenome. 22678532, Alfredo Lamburguini... Tantas vezes repetiu a ladainha que eu acabei batendo com o telefone na cara, trote com nome de carro desportivo italiano, quase as três da manha, isso sim já era sacanagem. Aquilo só podia ser obra da megera da Clarissa. E foi mal colocar o telefone no gancho, e me arrastar meio zonzo até o sofá com um mau humor desses de fila de banco, que o telefone voltou a tocar. Se há coisa sagrada a é respeitar sono de vizinho, sobretudo os de parede a parede, e nem falar se a coisa estoura quando um maníaco gago resolve passar trote no meio da madrugada. Será possível que o cretino pretendesse recomeçar o rosário, 22678532, Alfredo Lamburguini? Pois a aflição parecia que vinha com força, tudo a causa de Clarissa.  Dois segundos e outra vez o mesmo. A dona Celina e o comendador Jaguaribe, com o sono leve característico da terceira idade, seguro já estavam comentando como podia ser que eu recebera chamadas a uma hora daquelas. Com que cara vou entrar no elevador, e ter que pedir desculpa pela noite branca depois de tanto ring-ring-ring? Resolvi deixar o telefone fora do gancho, ao menos não importunava ninguém do condomínio, e tentava salvar  minha pele de ser acusado como um vizinho desregrado e sem escrúpulos. Mas agora, mesmo que eu quisesse o sono já tinha ido embora, não havia maneira de escapar do ventilador de teto, igualzinho aos policiais que fazem serão de 48 horas nos filmes negros americanos. Dois cigarros, um Mentex, rabiscos na agenda do ano passado, a pilha de lenços e cuecas colocada de qualquer jeito na gaveta da cômoda, aparar os pelos do nariz, fazer pipi sem me importar em salpicar a tampa do vaso, lá fui eu buscando o que fazer para trazer sem remédio o sono de volta. É nessas horas que a cabeça rebusca o que quer que seja para não deixar o cara maluco. A caixa de molho de tomate com as coisas da Clarissa voltou a entrar em cartaz. Eu já nem me lembrava dos pregadores de roupa com personagens da Disney, que eu deixei que ela comprasse, alegando que daria um pouco de vida ao ar decadente da minha área de serviço. Onde é que já se viu, um homem de mais cinqüenta anos com o varal de roupa cheio de pinças com carinhas do Pluto, da Minie, Cinderela, do Zé Carioca... Só depois que os meridianos do amor definem as diferenças evidentes de fuso, é que essas coisas se assumem com claridade. Nunca abri os dois malditos pacotes de pregador de roupa, e agora que voltem para ela igualzinhos a como saíram da loja, até com o mesmo saco plástico com reclame de tudo por um dólar. Também abri a nécessaire Louis Vuiton que ficava no armário do banheiro, na prateleira junto com os remédios e as coisas de higiene. E porque nunca me passou pela cabeça abrir a maldita bolsinha de viajem, e roubar algum detalhe mais íntimo de Clarissa? Por que nunca bisbilhotei esses pedacinhos de mundo, capazes de traduzir o que eu não via por estar cego e dominado por ela? Para ver como são as coisas, ali também descobri algo mais. Não havia Cristo que agüentasse o calvário, se por acaso me deliciava mais da conta com o feijão tropeiro ou com a salada de grão de bico.  À noite, era impensável poder me relaxar na cadeia de balanço do vovô, no sofá ou na cama, com pânico que me escapassem os gazes, o abdômen contraído quase ao ponto de estourar a barriga. E tudo só para evitar aquele olhar de reprovação como se eu fosse um dinossauro repugnante. E para minha estupefação, agora encontrava agora na nécessaire de griffe que ela comprou no dutyfree do Charles de Gaule, uns comprimidos que Clarissa tomava contra flatulência, e que deflagravam o que para mim só posso compreender como tortura psicológica. Se ela sabia que desde criança eu não suportava engolir qualquer comprimido, a sensação de ficarem atravessados na traquéia só faltava me matar de angustia, eu sempre fui de homeopatia porque as drágeas são minúsculas... Peidar uma vez ou outra, não pode ser crime. Os bons modos da Clarissa, ao menos no que se refere ao trato gástrico, eram fruto de química de laboratório, não  de “politesse”. E o que eu sofri? Sentia-me como um cachorro pestilento, controlando gazes todos os fins de semana, amedrontado por aquela tortura chinesa, e tudo só para chegar a conclusão que nessa caixa devem haver muito mais segredos por descobrir, pequenas barbaridades que por distração nunca deixei que fizessem parte de nossa consciência.





Na fila do check-in

Insisti mas de mil vezes que preferia ir para o aeroporto sozinho. Nada mais pratico que chamar um táxi, colocar as coisas no porta-malas, e pronto, não pensar em mais nada, nem em despedida, nem agradecer os votos de boa-viagem, nem ter que implorar a Deus que proteja o amigo que te acompanhou até a porta de embarque, sem levar uma bala perdida no caminho de volta pela Linha Vermelha. Mas não sei por que diabos o Flavio meteu na cabeça que eu não estava bem, que passava por um momento difícil e precisava de ajuda. No trajeto até o Galeão praticamente fiquei mudo, com ele de um lado para o outro tentando puxar o assunto da separação, e eu escapando como podia com monossílabos. Sou um fracasso quando tenho que dissimular meu mal estar, fico louco para tapar os ouvidos e não escutar sequer meus pensamentos. Era evidente que pela minha reação  ele sabia que eu não estava para conversê, mas os amigos são pra essas coisas, insistem heroicamente em cumprir com o  papel de guardiões,  passe o que passe. Flavio não tinha mais jogo de cintura, quase já não encontrava assunto, era só suportar o meu silencio na expectativa de até que ponto eu chegaria com a minha cara de bosta.  E isso já me parecia da sua parte ter estomago de camelo, com a cara de poucos amigos que eu botava, só me faltava soltar labaredas pelas narinas. Eu parecia um dragão quase ao ponto de lhe saltar na jugular.  No lugar dele já tinha dado meia volta e me abandonado ali mesmo, na ponte que liga o continente à Ilha do Governador, largado no meio do caminho como vendedor de água mineral em engarrafamento, entre quilos de monóxido de carbono e uma visão quase apocalíptica da Baía de Guanabara, sofás boiando e pneus decorando a água negra de dejetos da cidade maravilhosa. Quando acabou de manobrar no estacionamento do aeroporto, e abriu o porta-malas para que eu pegasse a bagagem, me olhou meio de banda, e perguntou com cara de cachorro magro,  se me incomodava que me acompanhasse ao saguão do terminal de embarque. Por mais que você esteja a ponto de explodir, um gesto assim de generosidade por parte de um amigo, deve sempre ser encarado como ato nobre. Ele só queria me mimar de alguma maneira, dar algum alento a um problema que na cabeça dele tinha mais transcendência do que na verdade significava para mim. Um final de semana em Buenos Aires era tempo mais que suficiente para que Clarissa e sua coleção de sapatos virassem poeira que o vento leva, tudo deixado para trás sem memória e sem saudade. Eu só pensava em comer como um rei na Ricoleta, ou acabar a noite em qualquer barzinho do Porto Madero com uma tremenda bebedeira de Jack Daniels.  E que ao dia seguinte ninguém me tirasse da cama antes da hora de almoçar.  O resto seria o resto, despachar a bagagem, tomar um cafezinho com Flavio, e passar direto ao controle de passaporte, deixando para trás tudo o que me recordasse que algum dia tive a ilusão de ser feliz ao lado daquela psicótica. Mas em nossa despedida, meu fiel amigo de tantos anos, quase como um cão de guarda,   ainda tinha reservado para mim uma boa surpresa. Foi pedir o cafezinho, e antes mesmo de acabar de botar o açúcar, Flavio tossiu seco e disse que precisava muito se abrir comigo. Acho até que mudei de expressão, tamanha era a gravidade que ele transparecia no olhar totalmente petrificado, de um terror quase instantâneo, desses de ver mula sem cabeça ou alma penada em cemitério.  O suor lhe escorria pela testa, como se estivesse a ponto de entrar em uma sala de operações para uma cirurgia de peito aberto sem tomar anestesia. Vamos, desembucha homem! Tenho mais o que fazer na vida - me saiu como recurso - junto com um sorriso pela metade, que eu retribuía como recompensa ao sacrifício de Flávio estar ali plantado com tanto estômago para aturar o meu mau humor. O silencio que antes eu precisava agora me intrigava, sem imaginar o que me viria pela frente, ele com os olhos enfiados no balcão do bar, eu a espera de uma chave que abrisse o cofre de tanto mistério. E aí veio o cabeção de nego estourando colado no meu pé,  uma pedrada no meio da testa, ou melhor, uma tremenda navalhada transversal na cara, dessas que nenhum cirurgião plástico tem maneira de dissimular. Numa excursão de inverno que fizemos em grupo ao Pico das Agulhas Negras, pouco mais de dois meses depois que eu e Clarissa começamos nossa historia, ele aproveitava que eu sempre dormia até mais tarde por causa do frio,  e saboreava o café da manhā entre as pernas da minha namorada, os dois dividindo gozo num pomar de macieiras, bem ao lado da cabana onde todos dormíamos. Nem ao menos a fruta não tinha pecado. Se fosse a sombra de uma mangueira, ou debaixo de um pé de tamarindo, não seria tão penosa a imagem bíblica do pecado, ela mordiscando uma maça escarlate e ele no papel de Adão, com o sangue todo concentrado no sexo, e me colocando um belo par de chifres com cara de bezerro desmamado. Como já disse, dissimular nunca foi o meu forte. Se eu pudesse, naquela hora mesmo pegava todos os sapatos da Clarissa e fazia uma montanha bem no meio do Campo de São Cristóvão. Aproveitava as festas juninas para arder uma fogueira com cheiro de chulé, e deixava inteirinha de presente para os nordestinos comemorarem uma linda noite de São João. Fui mais forte e resistente que Lampião no cangaço, e soltei uma boa gargalhada, tirando valor daquela confissão tão fora de lugar.  Pôrra, Flavio! Era só o que me faltava, pensei entre dentes mas sem dar na pinta. A urgência para poder escapar do constrangimento, busquei de repente, olhando o relógio e re-confirmando o horário do vôo no cartão de embarque. Quando voltar de Buenos Aires marcamos um chope. E não esquenta a cabeça, amigão, isso para mim já não tem mais importância – arrematei com chave de ouro. Nada pior que o ressentimento. Nas dietas para não ganhar celulites, o que mais Clarissa gostava era das maças argentinas.





No corredor do banheiro

Cheguei a pagar quase quinze dólares por um cow-boy de Jack Daniels no bar de moda da Ricoleta. Com meia vaca ainda insistindo em ruminar a janta no estomago, comecei meu rosário de tragos de um só tiro. Fazia igualzinho ao Clint Eastwood, ou ao John Wayne nos seus melhores tempos.  O cartão de crédito dava sinal verde, providencia que tomei assumindo também a parte que me devia Clarissa, sem esperar que alguma hora ela resolvesse saldar o que tinha pendurado comigo. Decidi acertar ao menos minha vida bancária, um pouco como limpar o hall de entrada da casa, por precaução a que alguma visita inesperada chegasse só pra buscar poeira em rodapé. Joguei sem rodeios com o gerente do banco mandando retirar dinheiro de uma aplicação a curto prazo, e liquidar de uma só tacada o que eu e a maníaca dos sapatos havíamos torrado pelas butiques de marca e ofertas de Mantahan. Claro que aproveitei e também bloqueei os dois cartões de Clarissa, tirando mais uma preocupação de cima de mim. Com a dívida futura do cartão em aberto, podia sonhar com meu coma alcoólico, agravado pelo tabagismo excessivo, os diabetes, e minhas prováveis complicações arteriais. Morrer de porre em Buenos Aires com tubos de oxigênio até a medula, e uma porção de maquininhas de vida vegetativa anunciando com bips intermitentes até que ponto eu ainda tinha sinais vitais, quase como fliperamas do outro mundo. Ao inicio a bebida me queimou de maneira sôfrega, o que pouco a pouco, sob efeito do Bourbon, deu espaço a uma euforia que eu já conhecia de outros carnavais. Queria poder provocar qualquer tipo de desproposito, daqueles que depois que passa a tormenta a gente decide se esquecer cheio de vergonha. Uma garota de uns vinte e poucos anos encostou-se à barra, buscando conversa, coisa que eu tentei escapar sem descolar os olhos um segundo daquele par de peitos perfeitos, algo que há muito eu não saboreava com tanto descaramento. Como nessas situações conversar é uma perda de tempo, dois tragos mais e a coisa já tinha passado à ação. Rebobinei na memória alguma melodia de Gardel, pensei em Kama Sutra, dei uma bela baforada na cigarrilha cubana buscando algum glamour socialista. Acabei quase sem espaço para mover-me detrás da saída de emergência do corredor dos banheiros, ela tirando proveito do que eu ainda rendia estando já passado na bebida, e eu evidentemente sem pratica nenhuma naquele tipo de telequeti sexual pós-moderno.   Quando voltamos para o balcão do bar, eu ainda pensava em seguir comemorando a sacanagem com a garota, mas a coisa já havia desandado e não houve maneira de encontrar remédio. É sempre assim, a gente engendra algo de romance, sonha até ficar todo melado, trepa concentrado para não sair como um animal desembestado, e depois acaba desembolsando uma fortuna com o analista, carente e precisando descobrir porque a aventura não teve futuro. Por isso deixei de acreditar que as sessões das terças e quintas podiam render algum resultado. É certo, aprendi muito sobre mim,  deixei que Lacan me babasse com os seus delírios psicanalíticos, voei longe embalado pelo olhar sempre impassível da minha terapeuta, a Doutora Maria Eugenia. Mas eu não agüentava mais de tão embolado, vivia buscando nó em pingo d´água.  E o que eu podia fazer se ainda por cima a minha psicóloga era gostosa pra caramba? Faltei numa quinta com uma desculpa esfarrapada. Na sessão seguinte, resolvi confessar que acordava varias vezes todo melado, sonhava sem parar com ela peladona, rolando comigo pela areia molhada de praias paradisíacas. E sabe o que passou? Ela tirou os óculos de vista cansada, fechou o  bloquinho onde anotava tudo da minha vida - seguro que por influencia inconsciente do tique televisivo que caracterizava o Flávio Cavancanti - me olhou com cara de peixe morto, e disse que eu devia buscar outro profissional. Eu por acaso estava inventando que na relação paciente-terapeuta sempre há um momento em que a coisa rola? Isso é de manual, todo mundo sabe. Agora, se eu provocava alguma situação constrangedora, e se por causa disso ela ficava com besteira passando pela cabeça, isso já não era problema meu. Era sair da consulta, tomar um refresco comigo, e me passar o sabão que fosse. Isso sim eu aceitaria.  Mas ficar com tesão e sair com essa teoria de buscar outro terapeuta, isso parecia até piada. Acho que devia ser proibido psicóloga usar mini saia, e as dela, com as pernas cruzadas tomando notas naquele bloquinho, davam para sempre estar por dentro da cor de calcinha que ela levava. Mas isso também já é passado. O problema é dar voltas e voltas, e acabar caindo no mesmo ponto morto. E com essa garota agora passava o mesmo. Ou será que ela não sabia que eu era um homem maduro, e que o sexo na minha idade já tem lá seus pormenores? As conseqüências nefastas dos traguinhos de Bourbon estão em qualquer duelo de pistola em filme de mocinho,  e que brasileiro e argentino também nunca foram muito de cruzar santo, eu ainda por cima com o agravante de estar sempre com cara de não me toque. Que faltava para a garota encher o saco, inventar uma desculpa esfarrapada para trocar de copo e sair contentinha com o primeiro garotão  que passasse?  E assim acabei a noite na Ricoleta, abandonado por uma louraça tipo capa de Playboy e vomitando a bebedeira detrás de uma arvore, com o máximo de discrição possível para não passar certificado de pinguço verde e amarelo. 

    

O canhão de Porto Madero

O que eu buscava era um pouco de emoção, não venhamos com rodeios. A trepada com a garota do bar, e depois eu botando as tripas para fora pela rua, torrando ainda por cima o que eu gastei, merecia comemoração a altura. Minha ficha policial nunca foi manchada, sequer quando adolescente e cheio de maconha na cabeça, os homens de ouro da Delegacia da Hilário de Gouveia nos deram ordem de prisão. Durante o regime militar do general Ernesto Geisel, todos sabiam de cor e salteado que cantar “parabéns pra você” fumando jererê na rua, às quatro da madrugada, era delito que os rapazes de classe média deviam pagar com corretivo moral no xadrez. Foi o próprio comissário Helio Vigio, em pessoa, quem bateu o kodak de cada um de nós, segundo ele, com revelado suficiente para que na próxima deslizada recuperasse na sua impressionante memória visual a cara de babaca  que todos devíamos ter, perfilados como grumetes e cagados de medo que algum encarregado pegasse o telefone para ligar para os responsáveis. Gosto de ter essas visões do passado com sabor de aventura, sobretudo se tenho na cabeça a idéia de recuperar um pouco de energia, com alguma transgressão daquelas que jamais sairia escrita em nenhum manual de etiqueta para rapazes de boa família. Cheguei ao Porto Madeiro em táxi, deixei o troco de gorjeta só para parecer que era rico. O fígado seguia dando agulhadas, mas ainda faltava bebida para que eu pusesse um ponto final na noitada. Tinha indicação do recepcionista do hotel, um barzinho freqüentado pela fina flor de Buenos Aires, lugar de boêmios e de artistas, bem ao gosto vanguardista que atravessa as madrugadas portenhas, mesmo quando o frio parece decepar os ossos. Voltei a pensar em Clarissa, talvez Flavio tivesse dado com a língua nos dentes, e ela intuitiva como é, pagasse o primeiro vôo, buscasse na conta online do cartão de crédito o nome do hotel pelo pagamento da reserva, e subornasse o chicote da recepção para pescar meu itinerário. Clarissa sempre foi maquiavélica e podia me dar o bote, aproveitando-se do meu estado de bebum inconsolável. Vivia dizendo que eu não sabia beber, que me passava da conta na vodka com lima da persia, e também nos dry martinis, que sempre foi o meu drink predileto, e que ela tratava de arruinar metodicamente, roubando a azeitona com cara de arrogância, para frustrar meu ultimo trago.  Eu não podia estar bem da cabeça, sintoma assim é típico de paranóico, só me faltava imaginar que ela me esperava sentada numa mesinha do bendito barzinho. Se o táxi ainda estivesse esperando, entrava na mesma hora e me arrancava para o bairro da Boca, lugar onde seguro ela não colocaria os pés por medo de assalto. Enfrentei a paranóia e contei até dez, agora com ímpeto  bastante  para abrir a porta do bar de um só golpe. Avancei feito entrada de mocinho em saloon de faroeste. Um frio glacial me correu pela espinha, uma mulher de costas levava o mesmo penteado que Clarissa, e a estatura também era quase igual. Mas não era momento para covardia. Decidi enfrentar o problema de frente, sem pestanejar, e tal foi o alivio ao descobrir que não era ela, que nem a feiúra da pseudo sósia me abalou. Como estava sozinha, porque de tão feia era difícil arranjar companhia, resolvi ser simpático e perguntar se podia sentar-me ao seu lado. Talvez eu precise me controlar um pouco mais na bebida, já não tenho idade para flertar assim tão sem critério, afinal ela era muito, mas muito, muito feia. Acho até que tinha buço, os pelos nos braços mais pareciam um matagal, além de uma pinta no canto da boca, cuja imagem meio desenfocada pelo excesso de álcool, dava à pobre mulher um ar de bruxa, disfarçada sim, de funcionária pública com um vestido floral de jérsei.  Dois tragos mais e logo resolvi voltar para o hotel, era melhor me atirar mareado na minha cama kingsize e conviver em solitário com as ondas do maremoto que eu havia montado na minha cabeça. Fora isso, também escapava de acabar pelado nos braços daquele canhão argentino, um desproposito se nem ao menos havia clima de guerra por alguma partida de futebol. Quando acordei no dia seguinte, lá pelas tantas, dei graças a Deus pela prudência de pedir ao barman que me chamasse um táxi. Escapei como o diabo da cruz quando a tal mulher feia resolveu tocar no meu braço, e propor que dançássemos um tango bem coladinhos.  O alarme de ataque nuclear saltou a todo volume.


  
Repasando contas

Não vejo motivo para esconder a verdade. Afinal se a mentira tem mesmo pernas curtas, é bem provável que em algum momento me atraiçoe a respeito do que me passou depois que tomei o táxi, fugindo da feiosa do barzinho. Minha intenção era mesmo voltar direto para o hotel, não me encontrava bem e não me ocorria nada mais criativo que a decisão de acabar a noite babando travesseiro. E de repente, me vejo tomado por aquela espécie de sincope. Pedi ao motorista que parasse o táxi imediatamente, assim de supetão, a menos de duas quadras do hotel. Desci do carro com a desculpa que precisava tomar um pouco de ar, e que não me importava fazer a pé o que ainda faltava do trajeto. Outra vez deixei o troco como se continuasse rico, mas agora como estratégia para evitar que o taxista viesse com algum comentário estúpido sobre o meu estado de embriaguez. Eu me sentia visivelmente incorporado por alguma força inexplicável. Que coisa estranha! Foi como se algum espírito do sincretismo africano tivesse entrado no meu corpo sem pedir licença, e me convertesse no homem mais firme e pragmático do mundo. Acho até que deixei de enrolar a língua para dar muchas gracias y buenas noches señor. A cabeça ia dando voltas e girando, como se a Avenida Corrientes fosse a Meca do candomblé. Pensei que se era entidade de santo, o melhor seria acender um Cohiba e deixar que a coisa seguisse seu rumo.  Uma única idéia me rondava a mente: seja como for, não vou manchar por nada desse mundo minha ficha na policia, e se Deus existe, e ainda por cima é brasileiro, chegou a hora de ele me provar porque o rogam como o Todo Poderoso. Foi baixar do táxi e confirmar que já se afastava o suficiente para que o chofer não pudesse rastrear meu destino pelo retrovisor, para pegar a primeira transversal e sair caminhando em busca de adrenalina.  Quanto mais me afastava da avenida, mais as ruas iam se estreitando, havia menos luz, e tudo parecia morto, sem viva alma capaz de julgar o que fazia um tipo como eu, perdido por aquelas bandas quase as cinco da madrugada. Sabia que o tempo não jogava a meu favor, e que a única opção era agir rápido, ser criativo ao estilo bandidinho.  Caso contrário, o melhor era esquecer a idéia de brincar com o perigo ajudado pelas forças do divino, deixar para lá o desejo quase pueril de que uma bomba de excitação pudesse me proporcionar qualquer tipo de aventura extraordinária. E foi amor à primeira vista, um Gol laranja anos 90, estacionado em lugar proibido, a pintura opaca disfarçando os remendos de massa por toda a carroceria, o pára-choque um mar de ferrugem, e ainda por cima os quatro pneus carecas, perfeitos para patinar como sabão. De repente, Flavio ressuscitou na minha memória, final de partida entre o Vasco e o Flamengo pela copa Brasil, eu ali plantado com ele no Maracanã, sem poder abrir o carro porque havia perdido as chaves de tanta cerveja e desgosto. Nunca vou esquecer meu mau humor pela surra que o bacalhau levou do rubro-negro, e ainda por cima, preocupado com a fortuna que ainda teria que gastar para que o reboque me levasse de volta à casa. Mas não é que o malandro do Flavio, que nessa época ainda era o meu melhor amigo, não abriu o quebra vento com uma chavinha do canivete suíço? Destravou a porta enfiando o braço pelo buraco e ainda fez ligação direta com dois fios que ele puxou detrás do volante? Pois que Deus agora me provasse que era capaz de me ajudar a fazer tudo igualzinho ao Flavio. Queria dar uma volta naquela banheira caindo aos pedaços, e se não me escapasse nenhum detalhe na memória, intentaria repetir passo a passo o mesmo do dia do futebol. O quebra vento abri de primeira com a chave da garagem de casa, dessas que são mais compridas e um pouco mais finas que as normais. Tenho que parar com essa mania de andar para cima e para baixo carregando tantas chaves, mas a verdade é que o meu complexo de porteiro de edifício aqui me caiu como uma luva. O braço metido para destravar a porta foi um pouco complicado, mas não exigiu mais de um minuto.   Pensei até que tivesse escolhido mal a profissão de roteirista, e que meu futuro na verdade houvesse sido bem mais promissor com vida de bandido, puxador profissional. Quanto ao Flavio, aquela maestria toda já era sintoma de personalidade torcida, motivo suficiente para que eu já pudesse imaginar que o sujeito levava habilidade de crocodilo, capaz de fornicar com a Clarissa, como teve coragem de fazer, comendo maçā   assim na minha cara. Já no interior do veículo pude descansar um pouco, tentei controlar a respiração ofegante, prova definitiva de que não nasci mesmo para o negocio. Fiquei até triste com a consciência de que eu não passava de um amador, borrado de medo que alguém me pegasse com a boca na botija dentro daquela lata velha com cheiro de poeira entranhada. A parte final custou um bocado. Tive que arrebentar a tapa de plástico que recobre o sistema elétrico, e demorei bastante até descobrir entre a fiarada quais eram os que eu devia dar contato para ativar a ignição na lata velha. Uma, duas, dez, quinze tentativas frustradas, até que o ronco do motor explodiu com sabor de vitória, meio travado por uns pinotes a causa do carburador entupido, mas ajustado a me dar serviço na aventura de sair dirigindo bebum pela cidade. Aquilo sim era felicidade, eu vendo tudo em duplicado, dirigindo um carro roubado pelas ruas desertas da capital argentina.  Não tenho palavras para traduzir o tesão de pilotar a chambreca!  Lembrei do filme do Roberto Carlos pilotando baratinha, de carrinho de rolimã descendo pirambeira , de Cadilaque Rabo de Peixe chocando de frente na época em que a Avenida Atlântica ainda tinha pista dupla. Pensei também no meu pai montando autorama, e dando grito para que a gente não desencaixasse os pedaços de pista.  Acho que dirigi por mais de meia hora com tudo isso pela cabeça, perdi a noção do tempo de tanta excitação. Peguei até contramão e rua sem saída. E tudo sem medo que algo de ruim me acontecesse, estava seguro como uma rocha, e pude acabar minha noite sem atropelos, e com chave de ouro, estacionado o carro no mesmo lugar proibido do qual o havia roubado. Fui muito correto, outro talvez não tivesse se preocupado com o detalhe de deixar uma nota de cem dólares encima do banco do carona, dinheiro mais que suficiente para que o dono pudesse reparar algum dano no painel quando saí arrancando tudo para fazer a ligação direta.  Poucas vezes me senti tão vitorioso e honesto comigo mesmo. Fui ladrão, aventureiro, paguei com valor justo qualquer arremate necessário, e ainda por cima dormi como um anjo, sem marola nem cabeça enfiada na privada para não sujar o chão do banheiro do hotel. Quando poderia aproveitar a vida assim, se ainda estivesse dominado pela megera da Clarissa?



O estopim

É impossível evitar que eu me questione se tudo não poderia ter acabado de outra maneira. Afinal, em qualquer relação o fracasso é responsabilidade que deve ser assumida a dois, cada um com a parte deteriorada que lhe concerne.  Antes que Clarissa saísse batendo a porta com toda aquela violência, a tensão do bate-boca foi feia de verdade, acusações daqui para lá, tipo chegamos ao limite e daqui não podemos passar. Ela saiu de calcinha do quarto como uma flecha e foi se vestindo possuída batendo cabeça pelo apartamento, atormentada como uma barata tonta depois de uma dose cavalar de inseticida.  Ouvi da cozinha o estrondo da porta quase arrebentando, tremi como vara verde e quase deixei cair e espatifar o copo de água com açúcar, recurso para ver se me acalmava um pouco do stress da tal cafeteira do terceiro milênio. O golpe foi tão violento, que a Maria faxineira assim que chegou no dia seguinte, teve que sair catando pedaços de reboco pelo capacho da entrada. De santo eu não tenho nada, caráter não me falta, sobretudo quando faz muito calor. Passando dos quarenta graus fico muito agitado, não posso suportar a sensação de melado pelo corpo, obcecado por um vai e vem de chuveiro como única solução de esfriar meu temperamento descalibrado.  Mas se estávamos em meados de julho, pleno inverno e eu com pulôver e até meias de lã.  A menos de vinte graus e um céu nublado com cara de chuva, meus nervos os tinha controlados dentro do possível. Não pretendo justificar nada, assumo a parte que me toca, mas que a Clarissa estava possuída por algum encosto, isso estava. A história começou antes mesmo de voltarmos para casa, depois de uma passada pelo shopping, onde é claro, ela já acumulava três sacolinhas de sapato. Não parava de comparar os preços daqui com os de Nova York, parecia uma máquina calculadora, programada em milésimos de segundo a converter o valor da taxa de cambio, e aproveitar em reais as ofertas tentadoras das liquidações de inverno.  Pois foi quase saindo para o estacionamento do shopping, que se formou o olho do furacão. Ela parou diante da vitrine de uma loja de eletrodomésticos, e de repente pareceu petrificada, hipnotizada por uma dessas cafeteiras de cápsulas, das que vivem colocando o George Clooney cheio de mulheres maravilhosas, implorando por uma bicada no cafezinho dele.  A partir daí já não houve mais remédio, sem maneira de frear a escalada esquizofrênica acelerada por uma ventania de acusações e cobranças.  Queria porque queria imediatamente a puta cafeteira, era moderna, pratica, rápida e ainda por cima acabava com a historia de ficar limpando pó de café espalhado pela pia da cozinha.  Mas isso era só o começo. Não bastava querer comprar uma cafeteira para ela, exigia que eu também me adaptasse ao expediente prático da humanidade, comprando também uma igualzinha para mim. Claro que não me deixei levar pelo jogo barato de que a minha vida mudaria com aquele traste de desenho industrial pós-moderno. E isso foi a gota que faltava, motivo suficiente para que a discussão começasse ali mesmo na loja, enquanto cobravam e empacotavam o estopim da nossa separação. O bate boca se estendeu até o estacionamento e ao longo de todo o caminho de volta a casa.  Quando entramos no prédio, já havia sido ativada a contagem regressiva para que explodisse o cinturão talibán cheio de cartuchos de dinamite. Nenhuma palavra no elevador, um silencio típico de funeral entrando em casa, duas horas ela trancada no banheiro só para fazer um pipi, e começou a ladainha, que eu era um retrógrado, um insensível, sem visão de futuro, e que além do mais, não tinha capacidade de dividir a vida com ninguém. Fui tachado de egoísta mão de vaca e dominado pelo meu ostracismo intelectual.  Minha estratégia nessas ocasiões sempre foi a de ficar calado, coisa que eu hoje faria diferente se tivesse a disposição o tal sapato de salto alto para meter-lhe sapatadas sem parar na cabeça. Juro que não tenho índole violenta, mas Clarissa é capaz de levar qualquer um a loucura. Engoli todo tipo de acusações e insinuações descabeladas, sintoma patente que a previsão da metereologia para o nosso conflito emocional prometia que o furacão ganharia força.  Sem mais armas Clarissa resolveu então abrir o jogo, contar em detalhes o motivo da cafeteira, coisa que até me provoca certo constrangimento em relatar, já que certos pormenores da nossa intimidade o melhor é deixar guardado a sete chaves. Mas já não tenho estrutura para conviver com tanta tortura psicológica, essa mulher é caso de internação em centro psiquiátrico, metida em camisa de força, dopada por milhares de bolinhas e levando até eletro choque. Preciso dividir isso com alguém. Sempre soube que Clarissa vivia gastando um dinheiral com cartomantes, astrólogos, consultava búzios e tarot. Marcava consultas com videntes e pitonisas,  e lá estavam eles com seus amuletos cada vez que precisava tirar alguma pedra do sapato.  Não era de falar muito a respeito, lance de mulher desconfiada, até parecia que ao invés de ver-me como amante, me tomava por inimigo. Eu deixava a coisa para lá e pensava, melhor assim, eu que tenho pavor até de vela com Creio em Deus Pai para as almas, prefiro não saber detalhes dessas peripécias de ocultismo. O que não me passava pela cabeça era que a tal obsessão que eu também comprasse a dita cafeteira, tivesse alguma coisa que ver com uma consulta que ela marcou com uma taróloga, ao dia seguinte que voltamos dos States.  A tal mulher, explicava Clarissa, também via o futuro com cera de vela em copo de água. Pois bem, o furacão acabou ganhando categoria cinco com as previsões da maldita vidente. Segundo Clarissa, minha cafeteira italiana, conservava como relíquia há mais de dez anos, e que nunca me causou problemas a não ser trocar de vez em quando a borracha de vedação, tinha energia negativa concentrada. Era fruto do mau olhado de uma ex-noiva, a Lucinha, que tinha me dado a cafeteira de presente de aniversário pouco antes que a própria Clarissa a desbancasse com picada de escorpião, o dia em que me conheceu na exposição de fotografias de um amigo que tínhamos em comum.  Caso eu não decidisse me livrar da dita cafeteira maligna, o trem da vida de Clarissa seguiria estancado em sinal vermelho, como mula empacada, fato que me colocava como cúmplice da ex-noiva baixo astral, sem nenhuma outra opção que aceitar o modelito das cápsulas metálicas coloridas com glamour de galã de Hollywood.  Tentei argumentar o que pude, mas Clarissa parecia irredutível, cada vez mais nervosa e já deixando claro que não daria o braço a torcer. Eu devia escolher, ou ela, ou a cafeteira italiana imediatamente na lixeira do prédio, única forma de cumprir com as instruções da profetiza do copinho.  Ou bem ela seguia suas indicações a risca, sem mais nenhum contato direto com pó de café, ou pagaria caro com a vida emperrada pelos supostos malefícios rogados pela minha ex-namorada, sua rival espiritual de cama. Até frigidez, insensibilidade de clitóris, e possível impotência com câncer de próstata faziam parte das previsões.  A mandingueira do tarot pegou pesado! Clarissa só podia estar louca, e eu também, por me deixar contaminar por tanto desproposito a respeito da minha pobre cafeteira italiana. Ao ver que da minha parte a coisa tão pouco chegava a bom porto, começou a me atirar na cara que se eu não evitasse que ela tivesse contato físico com o pó de café, me botava na lista de pessoas que lhe provocavam maus fluidos, e que, portanto, a coisa acabava ali mesmo. Jamais imaginei que o colapso viesse por algo tão inusitaso. Tentei contemporizar, ponderei que tudo não passava de auto sugestão e que a melhor maneira de provar que aquilo tudo era uma tremenda bobagem, era que nos acalmássemos saboreando um cafezinho na varanda do apartamento, com as xícaras de porcelana chinesas que herdei dos meus tataravôs. Foi acabar a frase e ela saiu como uma louca, chutando tudo o que encontrava pela frente. Salvei por milagre o biscuit alemão do século XVIII, com a Virgem Maria e Madalena aos pés do Cristo Morto.  Mesma sorte não tive com tudo o que estava pelo caminho. Enquanto se vestia como uma possessa precisando de exorcismo, o furacão saiu arrasando tudo o que encontrou pela frente, acabando o filme de terror com o famoso golpe de porta. Se ainda estivesse pagando analise, evitaria levar o tema do café satânico para buscar alguma justificação emocional.  Contando ninguém acredita, e com a psicóloga desvirtuada que eu tinha, isso daria pano para manga, sem chance de buscar minhoca onde não existe.  Caso deva agradecer a alguém que Clarissa tenha saído da minha vida, o farei de joelhos diante da minha santa e imaculada cafeteira italiana.



Pesadelo com a ex-sogra

A Consuelo sempre me pareceu uma falsa, nunca me enganou com a aquela mania de ficar na ponta dos pés para me dar dois beijinhos, e depois vir com conversa mole de que foi bailarina do Teatro Municipal. Afinal, essa historia de chamar a sogra de você é muito bonita quando existe intimidade, jamais quando você só encontra com a dita cuja uma vez na vida e outra na morte. É melhor manter certa formalidade quando a gente não sabe muito bem em que terreno está pisando.  E a casa da Consuelo sempre me pareceu um pântano em brumas de sexta feira 13, repleto de areias movediças que te engolem como nos filmes de Tarzan. Um pouco mais para a esquerda, o tapete persa comprado numa liquidação da Rua da Alfândega te engole numa tempestade de areia; para a direita, o sofá de vinil te sufoca com almofadas de veludo sintético imitando pele de tigre, e que esquentam uma barbaridade mesmo no inverno; na tua frente, a Liloca, a Poodle Toy 00, capaz de te lamber dos pés à cabeça  latindo cheia de veneno como uma histérica castrada; e pelas costas, bem, por trás é melhor nem pensar no que viria, eu sempre aterrorizado pela imagem macabra daquela caixa comprada na feira hippie da General Osório,  que ela tem orgulho de botar em exposição na estante da sala de visitas com as cinzas do falecido. Em síntese um perigo, tal mãe tal filha, e eu Ceguinho da Silva sem ver que Clarissa era igualzinha a mãe dela, já que a maldita sogra, ela sim,  nunca me enganou. Consuelo esticou tudo o que pode e o que não pode com a conta do banco, a pensão do marido inteira torrada em bisturi estético, e quem sabe lá que dividas penduradas da mercearia ao açougue para retocar com plástica o que pudesse recauchutar. Com aqueles olhinhos tão esticados que quase parecia da Malásia, ela tentava de tudo para que eu abrisse o livro com ela.  Mas eu intuía que tudo aquilo não passava de armadilha, queria só pretexto para me dar uma coça com vara de marmelo cada vez que chamava Clarissa na cozinha para ajudar a colocar a mesa. Não tenho duvida, devia falar cobras e lagartos a meu respeito, pobrezinha da filha tendo que viver tão comedida ao lado de um sujeito como eu. Acho que a Dona Consuelo, e a partir de agora o Dona não sai mais daí, um domingo até tentou me matar. Clarissa sabia que eu não andava fino do fígado, e veio toda melosa dizendo que a mamãe quer fazer uma surpresa para você no domingo. Isso eu soube numa terça, e juro por tudo o que existe de mais sagrado que o resto da semana não botei uma gota de álcool na boca, e me limitei a ficar de arroz e peito de frango grelhado tratando de preparar o pobre do fígado para o que me esperava no domingo. Só eu sei o que era saber de antemão as conseqüências da comida feita com tanto carinho pela centopéia da minha ex-sogra. A coisa já começou mal logo de entrada, um pratinho de torresmo me esperava encima da mesinha de centro da sala, além da hedionda caipirinha carregada de açúcar transbordando um long neck desses de chop, evidencia de que o tranco vinha feio, mas sem qualquer escrúpulo ou pudor por parte de nenhuma das duas. Quem vai acusar alguém de assassinato por um pratinho de torresmo? E o que dizer de um caldo verde com mais de quilo e meio de paio português, quase sem espaço para boiar na sopeira? Pois foi assim como estou contando, e acabei entrando por primeira vez na cozinha da jararaca. Ela  insistia que eu provasse se o puto caldo verde estava bom de sal, e acabava me enfiando goela abaixo duas rodelas gordas de paio para que eu fosse tomando gosto. Entrei naquele inferno gorduroso ao menos umas quatro vezes para ver o ponto de sal.  A pressão arterial nem posso imaginar a quantas andava com aquilo cada vez mais salgado, e eu pânico que me desse um derrame ou um infarto fulminante, incapaz de fazer qualquer comentário, única maneira de evitar problemas com a Clarissa por causa da Dona Consuelo. Quando sentamos a mesa, num pestanejar eu vi meu prato fundo de caldo verde até a borda, com ao menos uns quinze pedaços gigantescos de paio, um verdadeiro cemitério suíno com quase nada de caldo e a couve dando a impressão de que estava ali só para enfeitar. Não era um prato de caldo verde, era só paio, e tão pouco era paio português.  Porque se existe detalhe onde os lusitanos jamais se equivocam, é na qualidade do produto, e aquele era mais banha que outra coisa, seguro que comprado pela metade do preço de um paio de verdade. Alguém pode imaginar o que é durante todo o almoço ouvir o teu fígado murmurando: “ela quer te matar, seu idiota, vai te levar diretinho para uma gaveta do Instituto Medico Legal, o fígado dilacerado na autopsia por causa da quantidade de paio que a sogrinha está te obrigando a comer como um babaca”. O pobre do meu fígado não parava de pedir clemência, mas os olhos do demônio não me davam trégua, controlavam meu prato sem que eu tivesse escapatória. “Come mais um pouquinho, querido, não faça cerimônia!” Desgraçada! Assassina de paio falsificado! Já comecei vomitando mal colocar os pés em casa, e tudo isso sozinho, é claro, porque a Clarissa, já avisada no carro que eu não me encontrava bem e me vendo verde, decidiu pular fora do barco sem dar muita explicação.



Lar doce lar

O final de semana em Buenos Aires passou voando. Quando me dei conta lá estava eu novamente na fila do check in, impaciente para que meu vôo decolasse no horário, e com a maleta cheia de roupa suja para jogar na lavadora assim que pusesse os pés em casa. Precisava muito daquele respiro, sentir-me longe de tudo e de todos, da família, dos amigos, até mesmo dos vizinhos de porta. Necessitava poder passar do limite sem que ninguém julgasse se minhas loucuras eram reflexo de ressentimento, que confesso ainda tenho em relação às coisas que tive que suportar por quase três anos ao lado da Clarissa.  Pode ser também que tudo seja apenas resultado de imaturidade ou de falta de estrutura emocional. Preciso colocar a massa encefálica no seu devido lugar, e enfrentar que os problemas na vida não se resolvem com efeitos pirotécnicos. Foi dinheiro bem gasto, e não me importa que me acusem de perdulário. E se me atirarem pedras, tachado de inconsciente por gastar em apenas dois dias a fortuna que gastei atolado até o pescoço naquela tremenda gandaia portenha, assumo que jamais me passou pela cabeça medir as conseqüências de como acertaria outra vez o fracionamento do cartão de crédito com o bunda mole do meu gerente de banco. Não sou roteirista? Em meia hora sentado na frente do computador, já me sairá alguma trama dessas de novela. Faço a barba, coloco uma camisa de linho branco e tento encontrar alguma solução com ele.  O vôo de volta foi uma montanha russa, turbulência do inicio ao fim. Eu me sentia como São Pedro nas nuvens com a chave do céu me fisgando a vesícula, mas feliz da vida, nem me importava se um raio partisse a fuselagem ao meio.  Até me fazia graça pensar que a viajem de volta acabasse em tragédia, virando noticia de boletim extraordinário e titular do Jornal Nacional. Qual seria a cara da Clarissa, e nem falar na jararaca da Dona Consuelo, ouvindo a Fátima Bernardes pronunciar o meu nome com entonação de enterro: “o corpo do roteirista Felipe César de Araújo e Lima foi transladado essa tarde ao Rio de Janeiro, onde será velado em câmara ardente na Assembléia Legislativa”. Viraria celebridade é claro. Pois basta morrer de acidente de avião para que logo todas as histórias que você sempre teve que deixar guardadas na gaveta, ou porque ninguém se interessava em produzir, ou porque achavam muito caro, transformem um texto cheio de traças em ouro em pó. Os royalties de autor se multiplicam automaticamente, mesmo antes que os teus ossos já tenham se consumido para que autorizem a tão esperada exumação. Como eu gostaria de poder ver a cara das duas sanguessugas, ao vivo e a cores?  Vejo uma consolando à outra, cheias de falsidade, buscando um jeito de representar algum traço humano no caráter de demônio que elas sabem muito bem que a outra tem. Por sorte aterrissamos sem imprevistos no Galeão.  Peguei um táxi especial ainda com banca de rico, e bumba, eu outra vez desmaiado no sofá cama da sala. Tinha preguiça de tomar uma chuverada e não queria sujar a roupa de cama limpa, que a Maria faxineira esticou sem deixar uma dobra no lençol para me receber com cheirinho de amaciante de lavanda. Sonhei com a garota que eu amassei na saída de emergência atrás do banheiro, a feia do barzinho de Porto Madero se metia pelo meio vestida de garçonete, com uma coleção de Dry Martinis numa bandeja estampada com a foto da seleção brasileira de 70.  O taxista que eu abandonei antes de arrombar o carro, agora levava quepe e gravata, tudo ajustado ao luxo da limusine que ele dirigia, e na qual eu passeava de um lado ao outro de Buenos Aires, com muito champanhe francês e ao menos umas quatro mulheres peladas, cada uma lambendo uma fração erógena do meu corpo. No meio o sonho virou pesadelo, talvez receba alguma noticia de morte, Clarissa aparecia toda vestida de negro arrastando uma corda cheia de sapatos amarrados pelo cais do Porto Madero. Desde menino sempre ouvi dizer que sonhar com sapato é sinal de morte, e se Clarissa aparecia assim no meu, cheia deles e sem pedir licença para que virasse pesadelo, talvez a impressão de que minha mãe estivesse morta quando o idiota do Lamburguini resolveu me passar trote de madrugada, fosse alguma premunição. Quando acordei no dia seguinte, desci pela escada de serviço para não cruzar com Dona Celina e o Comendador Jaguaribe.  Comprei o pãozinho francês, o jornal, um bilhete de loteria pensando em tapar o buraco do cheque especial, e decidi não telefonar para saber como se encontrava  minha mãe. Seguro que anda bem de saúde, e que essa tal simbologia de sonho é pura mitologia popular.  Também verifiquei com o porteiro do prédio se Clarissa havia passado para buscar a famosa caixa de papelão de molho de tomate. Por sorte não me deixou nenhum bilhete desaforado, outra pagina virada. Com um pouco de paciência vou sair dessa e começar uma nova etapa de coroa solteirão. Essa noite vou sair outra vez bebendo como um gambá irresponsável pelos barzinhos da  Mem de Sá.



Bilhetinho para arrematar

Acabou sendo mais forte do que eu pensava, Clarissa. Minha intenção era colocar um ponto final com aquele bilhetinho que deixei no fundo da caixa de molho de tomate. Mas a verdade é que ainda me sobraram umas coisinhas para te dizer.  Não que isso agora tenha alguma importância extraordinária, tudo já está mais que dito e desfeito, e o que sobrou é só uma questão de arremate. Você sabe muito bem que sempre fui muito exigente com a bainha das minhas calças.  A barriga que eu ganhando ao teu lado, e você se recorda que eu praticamente nunca comia pizza nem macarrão, não deixa que a cintura fique sempre a uma mesma altura, e de tanto pisar na beira da calça a barra sempre acaba imunda. Com o tempo não há maneira de evitar que o tecido se esgarce e acabe rasgando. Pois bem, ilustríssima, a vida para mim é como uma bainha de calça, precisa estar calculada na proporção da barriga de cada um. Por isso, Clarissa, agora te peço que você me ajude por favor.  Vamos primeiro marcar a altura da bainha da perna esquerda, a que você sempre me disse que eu arrastava depois que levei aquela porrada jogando pelada no Aterro com os amigos da TVE.  Já estou pronto, tenho a cintura ajustada à meia barriga, nem mais para baixo nem para cima, você sabe o quanto eu odeio o modelo aposentado com os testículos esmigalhados num canto do gancho. Está preparada Clarissa? Pois bem, enfia o primeiro alfinete que aqui vem o troco. O teu tio Oscar, irmão da tua mãe, um final de semana daqueles horrorosos que você me obrigava a passar na casa de praia em Rio das Ostras, no meio de um daqueles churrascos esturricados com carne de segunda, se passou na cachaça e bateu com a língua nos dentes.  O teu pai, com a cara de santo que botava em qualquer foto de família, tinha uma historia de muitos e muitos anos com uma tal Beatriz. O tio Oscar jurou de pé juntos que era puta, conhecida de carteirinha na zona perto de Ponta Negra, como a famosa Bibi Camburão, com tara por qualquer macho de farda, sobretudo mulato da polícia civil . Tinha tudo natural, do jeitinho que veio ao mundo, nem silicone nem pele esticada, uma escultura cor de jambo quase vinte anos mais jovem que o finado Ricardão. Tua mãe acabou sabendo de tudo pouco mais de uno depois que teu pai bateu as botas. Foi de compras ao supermercado, aquele de esquina, perto da casa do tio Oscar, e a dita cuja da Beatriz se exibindo com um anel de água-marinha, igualzinho ao que a Dona Consuelo pensava que tinha sido roubado pela faxineira do Rio Comprido. Na época despediu a infeliz e fez até denuncia de ladra na delegacia, chamando a pobre mulher de negrinha mentirosa e só faltando subornar algum chave de cadeia para arrancar como fosse a bendita água-marinha. Pois bem, Clarissa, a tal Beatriz, a Bibi Camburão puta da zona, levava o anel estampado no dedo, marca registrada do caso que levou mais de cinco anos com o santinho do teu pai. E para que você já possa ir pensando em enfiar o próximo alfinete, vou avançando um pouco mais no rosário. O célebre infarte fulminante do santinho do teu pai, não teve na casa do tio Oscar jogando dominó.  Foi peladão e algemado na cama, depois de comer tudo o que Bibi lhe vivia dando cheia de pimenta , em troca é claro, de casa com vista para a praia, comida com cardápio de badejo e filé mignon,  e de tudo mais que fosse desaparecendo no apartamento da tua mãe no Rio Comprido. Os sintomas precoces do auzheimer que diagnosticaram na Dona Consuelo, com a ajuda daquele amigo meu que faz plantão no hospital Souza Aguiar, era tudo fachada, história para inglês ver.  Tua mãe não se esquecia de nada, Clarissa, via tudo e ficava quietinha como um cordeiro manso. Dona Consuelo nunca teve vocação para burra, e por quê entornar o caldo e acabar acampada debaixo da ponte, com alguma ordinária desfrutando do bom e do melhor? E assim foi, minha queridíssima Clarissa. Isso me faz lembrar da minha mãe dizendo, ainda moleque,  que sonhava que um dia eu fosse corredor de formula 1. Era fá do Fangio e adorava as costeletas do Fittipaldi. Cheguei até a pensar em pilotar carros conversíveis, tipo baratinha. Claro que acabei não realizando o sonho dela, acho que por culpa de ter lido tanta literatura soviética, e estudado tanto francês e inglês na faculdade de letras. E todos aqueles quilômetros de estanterias em bibliotecas, para ganhar com tanto sacrifício, quase como um escravo levando chibatadas no tronco, esse salário magro de sobrevivente tupiniquim que mal chega ao final do mês.  Nem corrida no autódromo de Jacarepaguá, nem em Interlagos, meu pódio de formula 1 acabou virando alegria impossível para a mamãe. Minha realidade é outra, sempre equilibrado na corda bamba entre a via-crúcis das aulas na universidade, os bicos em cinema, e os contratos que vez por outra ainda consigo assinar como roteirista de quinta categoria. Já o meu pai, mais pragmático e sensato, sempre me olhava com ar de preocupado e dizia que eu tinha tendência a sentir atração por vagabundas. Que triste é a vida!  Nós dois com os pais enterrados, sem poder contar com o apoio deles  em um momento tão especial como este! Antes eu tivesse dado ouvidos ao papai no seu leito de morte, pedindo que Cosme e Damião iluminassem o meu caminho para encontrar uma mulher decente e de bons princípios. Não se corte Clarissa! A altura da bainha me parece perfeita, por favor, não vacile em colocar a ultima marca de alfinete.  E só para não perder o fio da meada... Como a genética é hereditária, corre nas tuas veias a mesma tradição de colocar chifres, achando ainda por cima que o cornudo jamais vai se dar conta das tuas artimanhas. Antes de embarcar para Buenos Aires, cidade que graças a Deus eu nunca pus os pés com você, Flavio me contou, sem entrar em detalhes, como te saboreava no pomar de macieiras ao lado do abrigo das Agulhas Negras. Lembra? Estamos falando de pouco mais de um mês depois que você deixou teu primeiro par de sapatos com chulé no meu armário. Ontem mesmo tomei uma cerveja com Flavio, queria que me desse mais detalhes. Que humilhação, Clarissa! Jamais imaginei que ele tivesse guardado no armário dele, até o dia que fui de viagem para Argentina, mais de vinte pares de sapatos teus. Uma trepada ou outra mordiscando uma maça, ainda vale. Mas três anos inteirinhos de quarta a quinta, saltando entre a casa dele, na Marques de São Vicente, e o teu cubículo na Barata Ribeiro, isso sim já me parece falta de vergonha na cara. Por favor, Clarissa, não se altere nem fique nervosa, o ultimo que me falta é que você acabe me perfurando o tendão de Aquiles por descontrole emocional. Acho que dessa vez você conseguiu se superar totalmente, chegou à perfeição. Vê como é fácil fazer uma bainha bem feita? Daqui não sobra mais nada. Pensarei sempre em você quando não voltar a pisar na ponta da calça, nem der trabalho extra para a coitada da Maria faxineira, esfolando sempre os dedos  para lavar na mão a barra encardida das minhas calças. Tão pouco vou precisar dos alfinetes que sobraram, deixo todos para você. Claro que cada um é livre de fazer o que achar melhor com as suas coisas. Mas se conselho vale de algo, fica com a metade dos alfinetes e a outra dá de presente para tua mãe.  Algum dia meu presentinho de despedida seguro que será de grande valia. E quando vocês duas decidirem fazer o próximo vodu espetando alfinetes no bonequinho de pano do próximo pato que você cace na tua vida, também não se esqueça: adoro pato no Tucupi, mas só na panela, se tenho cara de algum bicho é de burro, não de pato. Hoje de manhā a Maria faxineira arrastou o armário do meu quarto e encontrou uma coisa que acho que você deixou ali. Sempre soube que você e a tua mãe eram boas de agulha. Já mandei fazer um despacho no centro espírita que a Maria freqüenta pelas bandas de Nova Iguaçu, com  o bonequinho que vocês duas fizeram todo alfinetado e cheio de pó de café encima, com meu nome bordado com linha vermelha nas costas.  Agora sou um homem livre! Aproveita os alfinetes, meu amor! Obrigado Clarissa, e muita sorte para você. 


fin