Tudo
na caixa de molho de tomate
por Zé Peixoto, all
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Bilhetinho
para acabar
Porque você bateu com a porta
daquele jeito, Clarissa? Eu não me encontrava bem e você sabia, me incomodava
quase tudo, sem tino e incapaz de suportar qualquer movimento que me deslocasse
um milímetro do eixo. A isso chamo arrogância, não tenho outra palavra. Quando
alguém se encontra como eu naquele dia, fica difícil engendrar generosidade
para aceitar qualquer intromissão no silencio que te protege do medo. Não é
hora de dissimular, nem tentar cobrir o sol com a peneira. O que você fez foi
horrível e acho melhor a gente colocar um ponto final nessa nossa historia. Se
não te disse nada na hora foi porque não havia maneira de encontrar forças, ou
quem sabe achei melhor não provocar nenhuma situação violenta que me deixasse
ainda pior do que eu já estava. Pedi à Maria faxineira que coloque todas as
tuas coisas numa caixa, ordenadas o melhor possível pra que você não me atire
na cara, mais uma vez, que eu sou um desordenado e sem nenhum sentido quântico.
É verdade, nunca me importaram os detalhes, odiava as aulas de química e
biologia, nunca vi sentido lógico por detrás dos microscópios. Gosto da
imensidão, do vazio que me provoca no estomago olhar a via Láctea, ou admirar a
Lua minguante do balcão do meu apartamento. Mesmo que eu vista a carapuça que a
minha vida sempre foi um armário com tudo empilhado, sem haver maneira de
colocar ordem no que quer que fosse, não estou para enfrentar outra vez esse
tipo de comentário. Com o tempo tentarei organizar minhas coisas, pouco a
pouco, mas à minha maneira, sem ninguém se intrometendo com o que eu devo ou
não devo fazer. Começo pela tua caixa, e espero que não te importe que seja uma
dessas de supermercado. Tento só facilitar as coisas, as minhas é claro, preciso
recuperar ao menos um respiro de auto-estima. Sei que tudo pode parecer para
você acriançado, mas já nem isso me
importa mais, chegou a hora de cada um ser livre de pensar o que quiser.
Aproveitei que tinha insônia, e revisei ontem mesmo todos os recibos do banco e
a nossa conta conjunta nos dois cartões de crédito. A viajem a Nova York foi
fantástica, mas não se esqueça que grande parte do buraco veio das tuas mãos,
ou melhor, dos teus pés, com essa mania desbaratada de sempre sair comprando
sapatos. É para que você veja como somos diferentes! Eu com meu armário feito
uma trincheira abarrotada de corpos mutilados, já em estado de putrefação moral
avançada, e você disfarçando com água de colônia as tuas cinqüenta mil
sapatarias, de todas as cores, de modelos abertos e fechados, de couro, de
palha ou de pano, com saltos baixos, plataformas e pontas de agulhas, algumas com
mais de sete e meio por causa do teu complexo de baixinha. Com a convivência, a
gente acaba absorvendo quase tudo um do outro, a faceta boa e também a parte
podre. E nem faz tanta diferença se a gente vive colado o tempo todo, ou se a
formula é escovar os dentes juntos só nos finais de semana. Ao menos nisso acho
que acertamos na decisão. Você pode imaginar o que poderia ter sido se houvéssemos
assinado algum papel diante de um juiz? Ou se por carência afetiva, tentando
dar satisfação à família e aos amigos mais íntimos, tivéssemos subido a um
altar e jurado amor eterno diante de um padre, que ainda por cima, ao cabo de
alguns anos, poderia estar acusado de envolvimento em algum escândalo de
pederastia? Acho que você também devia dar graças a Deus de ter escapado dessa,
com certeza hoje tua historia nessa casa não caberia numa caixa de molho de
tomate. Ou possivelmente quem sairia pela porta seria eu, mesmo que o nosso
teto fosse fruto da minha herança, e a cama e os moveis de quarto, assim como o
espelho bisouté do corredor e as peças de decoração que você sempre menosprezou
de trastes, fizessem parte da história da minha família, desde que foram
estreadas pelos meus avós quando voltaram da lua de mel em Petrópolis. Teu
argumento seria imbatível e eu sairia calado pela porta, o rabo entre as pernas
e com pouco mais que um par de livros, a escova de dente esmerilhada e o
aparelho de barba, aquele que você toda a vida ironizou como démodé e parecido com a navalha do
Gepeto. Com tantos sapatos nessa casa, seria complicado você encontrar outro
armário para guardar teus quilômetros de solas com pouco gasto. Por mais que
você possa dizer que não, estou seguro que seria assim. No começo tudo tem graça, a gente ri a toa
por qualquer bobagem. Parecia divertido quando você dizia invejar a Imelda Marcos
pela coleção de sapatos dela. Jamais te diria na cara, mas já faz tempo que me
provoca náuseas imaginar que você e ela, ao menos nos pés, sejam tão encaixadas
como unha e carne. Sabia que até tentaram matar essa mulher? Foi com dinheiro
roubado, e a custa de muita porrada em gente inocente, que a cara metade do
ditador filipino teve tempo e dinheiro para viver só pensando em comprar
sapatos. Claro que quando falo de você, minha querida, me refiro à outro tipo de desvio de caráter, e
qualquer critica fica restrita ao pessoal de cama , mesa e banho, jamais pensei
que você não fosse honesta e trabalhadora. Também acho que você é amiga dos
teus amigos, que apesar de poucos, parecem não ver inconveniente algum na tua forma
arrogante, e na maneira pouco respeitosa como você desqualifica permanentemente
o problema alheio, as coisas para você sempre podiam ser piores. É que o calo
só aperta no teu pé, o que sofre ou perturba o outro é coisa de novela, passa
com uma aspirina americana “extra strength” e umas rodelas de pepino na testa,
se por acaso a cabeça ficar a ponto de estourar. E te juro, não me faltaram
motivos para perder a finura nesses anos que dividimos a cama de sexta a
domingo. Você pode imaginar as barbaridades que me passavam pela cabeça? Como
você acha que eu me sentia quando tinha que engolir em seco, já vestido para ir
ao cinema, você revirando tua sacola “d’amour de weekend” sem encontrar um escarpin marinho que você havia esquecido no
teu mausoléu de sapatos? O que eu podia fazer depois com você totalmente
histérica, visto que a única opção que te sobrava, continuamente precisava demão
de graxa para evitar passar vergonha na fila do Roxy? Com paciência de Jó,
Clarissa, eu pagava o pato caladinho e manso, esfregando o couro quase novo do
sapato até chegar ao brilho que te fosse mais confortável. Algum dia você parou
para imaginar o martírio de limpar as minhas unhas com escovinha, como se eu
fosse um engraxate do Largo do Machado? E o que te parece me resignar calado com
o punho da camisa social sempre com uma mancha conjugada com a cor da cera do
teu sapato? Se eu pudesse voltar no tempo, propunha que você, minha querida, deixasse
sempre guardado no meu armário o sapato com o salto mais fino da tua
coleção. Na primeira que eu passasse
pelo papel de engraxate, e a gente perdesse a hora do cinema, acabando
evidentemente sem nenhuma outra opção que não fosse assistir a qualquer merda
pela televisão - e se é mentira, quero que me caia agora um raio encima - não
pensaria duas vezes em sair metendo sapatadas sem parar na tua cabeça com o maldito
salto fino, até abrir o teu crânio e ver os teus miolos soltando fumaça. O
melhor mesmo é não pensar mais no que passou. Isso já feneceu como roseira sem
molhar no jardim, e agora só quero que a Maria faxineira coloque na caixa de papelão
do Pão de Açúcar, cada coisa que me faça lembrar que algum dia você fez parte da
minha vida. E que a partir daí, depois que você recupere as tuas bugigangas com
o porteiro do prédio, eu possa te apagar de uma vez por todas da minha vida. Eu
algum dia disse que você tem chulé, Clarissa? Pois sim, o Polvilho Anticéptico
Granado não te serve para nada. Com a pouca consciência do que você pode
provocar de sinistro na vida de alguém, seguro que nunca te passou pela cabeça
que o teu chulé, de segunda a quinta, ficasse impregnado em cada cantinho da
minha casa. Para que você tenha uma idéia, eu até pedi à Maria que trocasse a
marca de desinfetante de assoalho, só para tentar que o teu cheiro não me
perseguisse como uma alma penada durante o resto da semana. Tão elegante,
altiva, mas com chulé de gentinha. Claro que também me cortei de te explicar
esse detalhe, seria o mesmo que acabar com a relação, você ofendida e
ironizando o desproposito da minha acusação, visto a fortuna que você sempre
gasta cada mês, tratando dos teus pés no Doutor Scholl. Acho que a Maria tentou
ao menos umas duas ou três marcas diferentes de desinfetante, mas nenhum deu
resultado. Para você ver como é a vida, sofri muito calado.
O
Alfredo me chamou de madrugada
Chamar alguém por telefone no meio
da madrugada, sem que seja caso de vida ou morte, é no mínimo uma invasão de
privacidade. Lá sabe a pessoa se o sujeito teve um dia pesado, e precisa dormir
direto para na manhā seguinte ter forças de enfrentar o batente? Pois tem gente
que liga o automático e faz esse tipo de barbaridade. Eu fiquei no computador
até tarde, o argumento do documentário precisava estar pronto até quinta pela
manhā, e ainda não havia acabado de pesquisar
por Internet a íntegra do discurso que Mahatma Gandhi fez em Londres, em 1931.
Não sei por que cargas d´água a máquina ia tão lenta, cada descarga de página
demorava uma eternidade. As operadoras telefônicas vivem prometendo um mundo de
maravilhas, transmissão galáctica de dados, mas na hora do vamos ver, tudo é
lento, lento ao ponto de dar nos nervos. Já passava das duas quando desliguei a
torre e me atirei no sofá cama da sala. A preguiça me impedia de arrumar a
pilha de roupas estacionada para lavar em cima da cama. Pois foi começar a
pegar no sono e toca o telefone. Primeiro pensei na minha mãe, morreu de repente,
e deve ser algum parente para dar a noticia de onde velam seu corpo, e que
providencias já foram tomadas para que eu não precise me preocupar com
praticamente nada. A sensação de culpa veio amplificada por uma bomba de
adrenalina. Pronto! Mamãe morreu e agora vão me acusar de ser um filho
desnaturado, de nunca haver me importado se a pobre mulher precisava de alguma
coisa, se tomava os remédios para hipertensão na hora certa, se forçava demasiado
as cervicais com as sacolas do mercado, ou se simplesmente havia esquecido de alguma
coisa estragada na geladeira. São essas sensações que ruminam o coração da
gente em questão de segundos. Tudo
explode com um ring-ring-ring no meio da noite, e você se sente pelado de alma,
cheio de remotas incriminações. Pois era um tipo chamado Alfredo, de voz melosa
e expressões de amabilidade duvidosa. As desculpas que me dava não me
importavam um caralho, cheio de dedos por me importunar àquela hora, por me
acordar sem ter nada de urgente a comentar. Parecia mais um vendedor de
enciclopédia Barsa, que eu nem sei se ainda existem, mas que são o protótipo de
qualquer cara pentelho que sempre discursa como disco arranhado o mesmo
bla-bla-bla. Minha reação foi de barraco, sem constrangimento de ser grosseiro
ao exigir que se identificasse. Já que não
reconhecia a voz, nem entendia do que se
tratava, o primeiro que me ocorreu foi que alguém estivesse me controlando,
manipulado por Clarissa. Do outro lado
da linha, com uma reação cada vez mais desconcertada, o individuo se entrecortava
por atropelos de alguém que na infância seguro teve problemas com a gagueira, um tal Alfredo, dando voltas feito peão, repetindo
meu numero de telefone, e seu nome com sobrenome. 22678532, Alfredo
Lamburguini... Tantas vezes repetiu a ladainha que eu acabei batendo com o
telefone na cara, trote com nome de carro desportivo italiano, quase as três da
manha, isso sim já era sacanagem. Aquilo só podia ser obra da megera da
Clarissa. E foi mal colocar o telefone no gancho, e me arrastar meio zonzo até
o sofá com um mau humor desses de fila de banco, que o telefone voltou a tocar.
Se há coisa sagrada a é respeitar sono de vizinho, sobretudo os de parede a
parede, e nem falar se a coisa estoura quando um maníaco gago resolve passar
trote no meio da madrugada. Será possível que o cretino pretendesse recomeçar o
rosário, 22678532, Alfredo Lamburguini? Pois a aflição parecia que vinha com
força, tudo a causa de Clarissa. Dois
segundos e outra vez o mesmo. A dona Celina e o comendador Jaguaribe, com o
sono leve característico da terceira idade, seguro já estavam comentando como
podia ser que eu recebera chamadas a uma hora daquelas. Com que cara vou entrar
no elevador, e ter que pedir desculpa pela noite branca depois de tanto
ring-ring-ring? Resolvi deixar o telefone fora do gancho, ao menos não
importunava ninguém do condomínio, e tentava salvar minha pele de ser acusado como um vizinho
desregrado e sem escrúpulos. Mas agora, mesmo que eu quisesse o sono já tinha
ido embora, não havia maneira de escapar do ventilador de teto, igualzinho aos
policiais que fazem serão de 48 horas nos filmes negros americanos. Dois
cigarros, um Mentex, rabiscos na agenda do ano passado, a pilha de lenços e
cuecas colocada de qualquer jeito na gaveta da cômoda, aparar os pelos do
nariz, fazer pipi sem me importar em salpicar a tampa do vaso, lá fui eu
buscando o que fazer para trazer sem remédio o sono de volta. É nessas horas
que a cabeça rebusca o que quer que seja para não deixar o cara maluco. A caixa
de molho de tomate com as coisas da Clarissa voltou a entrar em cartaz. Eu já nem me
lembrava dos pregadores de roupa com personagens da Disney, que eu deixei que
ela comprasse, alegando que daria um pouco de vida ao ar decadente da minha
área de serviço. Onde é que já se viu, um homem de mais cinqüenta anos com o
varal de roupa cheio de pinças com carinhas do Pluto, da Minie, Cinderela, do
Zé Carioca... Só depois que os meridianos do amor definem as diferenças
evidentes de fuso, é que essas coisas se assumem com claridade. Nunca abri os
dois malditos pacotes de pregador de roupa, e agora que voltem para ela
igualzinhos a como saíram da loja, até com o mesmo saco plástico com reclame de
tudo por um dólar. Também abri a nécessaire Louis
Vuiton que ficava no armário do banheiro, na prateleira junto com os
remédios e as coisas de higiene. E porque nunca me passou pela cabeça abrir a
maldita bolsinha de viajem, e roubar algum detalhe mais íntimo de Clarissa? Por
que nunca bisbilhotei esses pedacinhos de mundo, capazes de traduzir o que eu
não via por estar cego e dominado por ela? Para ver como são as coisas, ali
também descobri algo mais. Não havia Cristo que agüentasse o calvário, se por
acaso me deliciava mais da conta com o feijão tropeiro ou com a salada de grão
de bico. À noite, era impensável poder
me relaxar na cadeia de balanço do vovô, no sofá ou na cama, com pânico que me
escapassem os gazes, o abdômen contraído quase ao ponto de estourar a barriga.
E tudo só para evitar aquele olhar de reprovação como se eu fosse um dinossauro
repugnante. E para minha estupefação, agora encontrava agora na nécessaire de griffe que ela comprou no dutyfree
do Charles de Gaule, uns comprimidos que Clarissa tomava contra flatulência, e
que deflagravam o que para mim só posso compreender como tortura psicológica.
Se ela sabia que desde criança eu não suportava engolir qualquer comprimido, a
sensação de ficarem atravessados na traquéia só faltava me matar de angustia,
eu sempre fui de homeopatia porque as drágeas são minúsculas... Peidar uma vez
ou outra, não pode ser crime. Os bons modos da Clarissa, ao menos no que se
refere ao trato gástrico, eram fruto de química de laboratório, não de “politesse”. E o que eu sofri? Sentia-me
como um cachorro pestilento, controlando gazes todos os fins de semana, amedrontado
por aquela tortura chinesa, e tudo só para chegar a conclusão que nessa caixa
devem haver muito mais segredos por descobrir, pequenas barbaridades que por
distração nunca deixei que fizessem parte de nossa consciência.
Na
fila do check-in
Insisti mas de mil vezes que
preferia ir para o aeroporto sozinho. Nada mais pratico que chamar um táxi,
colocar as coisas no porta-malas, e pronto, não pensar em mais nada, nem em
despedida, nem agradecer os votos de boa-viagem, nem ter que implorar a Deus
que proteja o amigo que te acompanhou até a porta de embarque, sem levar uma
bala perdida no caminho de volta pela Linha Vermelha. Mas não sei por que
diabos o Flavio meteu na cabeça que eu não estava bem, que passava por um
momento difícil e precisava de ajuda. No trajeto até o Galeão praticamente
fiquei mudo, com ele de um lado para o outro tentando puxar o assunto da
separação, e eu escapando como podia com monossílabos. Sou um fracasso quando
tenho que dissimular meu mal estar, fico louco para tapar os ouvidos e não
escutar sequer meus pensamentos. Era evidente que pela minha reação ele sabia que eu não estava para conversê, mas
os amigos são pra essas coisas, insistem heroicamente em cumprir com o papel de guardiões, passe o que passe. Flavio não tinha mais jogo
de cintura, quase já não encontrava assunto, era só suportar o meu silencio na
expectativa de até que ponto eu chegaria com a minha cara de bosta. E isso já me parecia da sua parte ter
estomago de camelo, com a cara de poucos amigos que eu botava, só me faltava
soltar labaredas pelas narinas. Eu parecia um dragão quase ao ponto de lhe
saltar na jugular. No lugar dele já
tinha dado meia volta e me abandonado ali mesmo, na ponte que liga o continente
à Ilha do Governador, largado no meio do caminho como vendedor de água mineral
em engarrafamento, entre quilos de monóxido de carbono e uma visão quase
apocalíptica da Baía de Guanabara, sofás boiando e pneus decorando a água negra
de dejetos da cidade maravilhosa. Quando acabou de manobrar no estacionamento
do aeroporto, e abriu o porta-malas para que eu pegasse a bagagem, me olhou
meio de banda, e perguntou com cara de cachorro magro, se me incomodava que me acompanhasse ao
saguão do terminal de embarque. Por mais que você esteja a ponto de explodir, um
gesto assim de generosidade por parte de um amigo, deve sempre ser encarado
como ato nobre. Ele só queria me mimar de alguma maneira, dar algum alento a um
problema que na cabeça dele tinha mais transcendência do que na verdade
significava para mim. Um final de semana em Buenos Aires era
tempo mais que suficiente para que Clarissa e sua coleção de sapatos virassem
poeira que o vento leva, tudo deixado para trás sem memória e sem saudade. Eu
só pensava em comer como um rei na Ricoleta, ou acabar a noite em qualquer
barzinho do Porto Madero com uma tremenda bebedeira de Jack Daniels. E que ao dia seguinte ninguém me tirasse da
cama antes da hora de almoçar. O resto seria
o resto, despachar a bagagem, tomar um cafezinho com Flavio, e passar direto ao
controle de passaporte, deixando para trás tudo o que me recordasse que algum
dia tive a ilusão de ser feliz ao lado daquela psicótica. Mas em nossa
despedida, meu fiel amigo de tantos anos, quase como um cão de guarda, ainda tinha reservado para mim uma boa surpresa.
Foi pedir o cafezinho, e antes mesmo de acabar de botar o açúcar, Flavio tossiu
seco e disse que precisava muito se abrir comigo. Acho até que mudei de
expressão, tamanha era a gravidade que ele transparecia no olhar totalmente
petrificado, de um terror quase instantâneo, desses de ver mula sem cabeça ou
alma penada em
cemitério. O suor lhe
escorria pela testa, como se estivesse a ponto de entrar em uma sala de
operações para uma cirurgia de peito aberto sem tomar anestesia. Vamos,
desembucha homem! Tenho mais o que fazer na vida - me saiu como recurso - junto
com um sorriso pela metade, que eu retribuía como recompensa ao sacrifício de Flávio
estar ali plantado com tanto estômago para aturar o meu mau humor. O silencio
que antes eu precisava agora me intrigava, sem imaginar o que me viria pela
frente, ele com os olhos enfiados no balcão do bar, eu a espera de uma chave
que abrisse o cofre de tanto mistério. E aí veio o cabeção de nego estourando
colado no meu pé, uma pedrada no meio da
testa, ou melhor, uma tremenda navalhada transversal na cara, dessas que nenhum
cirurgião plástico tem maneira de dissimular. Numa excursão de inverno que
fizemos em grupo ao Pico das Agulhas Negras, pouco mais de dois meses depois
que eu e Clarissa começamos nossa historia, ele aproveitava que eu sempre
dormia até mais tarde por causa do frio,
e saboreava o café da manhā entre as pernas da minha namorada, os dois
dividindo gozo num pomar de macieiras, bem ao lado da cabana onde todos
dormíamos. Nem ao menos a fruta não tinha pecado. Se fosse a sombra de uma
mangueira, ou debaixo de um pé de tamarindo, não seria tão penosa a imagem
bíblica do pecado, ela mordiscando uma maça escarlate e ele no papel de Adão,
com o sangue todo concentrado no sexo, e me colocando um belo par de chifres
com cara de bezerro desmamado. Como já disse, dissimular nunca foi o meu forte.
Se eu pudesse, naquela hora mesmo pegava todos os sapatos da Clarissa e fazia
uma montanha bem no meio do Campo de São Cristóvão. Aproveitava as festas
juninas para arder uma fogueira com cheiro de chulé, e deixava inteirinha de
presente para os nordestinos comemorarem uma linda noite de São João. Fui mais
forte e resistente que Lampião no cangaço, e soltei uma boa gargalhada, tirando
valor daquela confissão tão fora de lugar. Pôrra, Flavio! Era só o que me faltava, pensei
entre dentes mas sem dar na pinta. A urgência para poder escapar do
constrangimento, busquei de repente, olhando o relógio e re-confirmando o
horário do vôo no cartão de embarque. Quando voltar de Buenos Aires marcamos um
chope. E não esquenta a cabeça, amigão, isso para mim já não tem mais importância
– arrematei com chave de ouro. Nada pior que o ressentimento. Nas dietas para
não ganhar celulites, o que mais Clarissa gostava era das maças argentinas.
No
corredor do banheiro
Cheguei a pagar quase quinze dólares
por um cow-boy de Jack Daniels no bar de moda da Ricoleta. Com meia vaca ainda insistindo
em ruminar a janta no estomago, comecei meu rosário de tragos de um só tiro. Fazia
igualzinho ao Clint Eastwood, ou ao John Wayne nos seus melhores tempos. O cartão de crédito dava sinal verde,
providencia que tomei assumindo também a parte que me devia Clarissa, sem
esperar que alguma hora ela resolvesse saldar o que tinha pendurado comigo. Decidi
acertar ao menos minha vida bancária, um pouco como limpar o hall de entrada da
casa, por precaução a que alguma visita inesperada chegasse só pra buscar poeira
em rodapé. Joguei
sem rodeios com o gerente do banco mandando retirar dinheiro de uma aplicação a
curto prazo, e liquidar de uma só tacada o que eu e a maníaca dos sapatos
havíamos torrado pelas butiques de marca e ofertas de Mantahan. Claro que
aproveitei e também bloqueei os dois cartões de Clarissa, tirando mais uma
preocupação de cima de mim. Com a dívida futura do cartão em aberto, podia
sonhar com meu coma alcoólico, agravado pelo tabagismo excessivo, os diabetes, e
minhas prováveis complicações arteriais. Morrer de porre em Buenos Aires com
tubos de oxigênio até a medula, e uma porção de maquininhas de vida vegetativa anunciando
com bips intermitentes até que ponto eu ainda tinha sinais vitais, quase como fliperamas
do outro mundo. Ao inicio a bebida me queimou de maneira sôfrega, o que pouco a
pouco, sob efeito do Bourbon, deu espaço a uma euforia que eu já conhecia de
outros carnavais. Queria poder provocar qualquer tipo de desproposito, daqueles
que depois que passa a tormenta a gente decide se esquecer cheio de vergonha.
Uma garota de uns vinte e poucos anos encostou-se à barra, buscando conversa,
coisa que eu tentei escapar sem descolar os olhos um segundo daquele par de
peitos perfeitos, algo que há muito eu não saboreava com tanto descaramento.
Como nessas situações conversar é uma perda de tempo, dois tragos mais e a
coisa já tinha passado à ação. Rebobinei na memória alguma melodia de Gardel,
pensei em Kama Sutra,
dei uma bela baforada na cigarrilha cubana buscando algum glamour socialista. Acabei
quase sem espaço para mover-me detrás da saída de emergência do corredor dos
banheiros, ela tirando proveito do que eu ainda rendia estando já passado na
bebida, e eu evidentemente sem pratica nenhuma naquele tipo de telequeti sexual
pós-moderno. Quando voltamos para o
balcão do bar, eu ainda pensava em seguir comemorando a sacanagem com a garota,
mas a coisa já havia desandado e não houve maneira de encontrar remédio. É
sempre assim, a gente engendra algo de romance, sonha até ficar todo melado, trepa
concentrado para não sair como um animal desembestado, e depois acaba desembolsando
uma fortuna com o analista, carente e precisando descobrir porque a aventura não
teve futuro. Por isso deixei de acreditar que as sessões das terças e quintas
podiam render algum resultado. É certo, aprendi muito sobre mim, deixei que Lacan me babasse com os seus
delírios psicanalíticos, voei longe embalado pelo olhar sempre impassível da
minha terapeuta, a Doutora Maria Eugenia. Mas eu não agüentava mais de tão
embolado, vivia buscando nó em pingo d´água.
E o que eu podia fazer se ainda por cima a minha psicóloga era gostosa
pra caramba? Faltei numa quinta com uma desculpa esfarrapada. Na sessão seguinte,
resolvi confessar que acordava varias vezes todo melado, sonhava sem parar com
ela peladona, rolando comigo pela areia molhada de praias paradisíacas. E sabe
o que passou? Ela tirou os óculos de vista cansada, fechou o bloquinho onde anotava tudo da minha vida - seguro
que por influencia inconsciente do tique televisivo que caracterizava o Flávio
Cavancanti - me olhou com cara de peixe morto, e disse que eu devia buscar
outro profissional. Eu por acaso estava inventando que na relação
paciente-terapeuta sempre há um momento em que a coisa rola? Isso é de manual,
todo mundo sabe. Agora, se eu provocava alguma situação constrangedora, e se
por causa disso ela ficava com besteira passando pela cabeça, isso já não era
problema meu. Era sair da consulta, tomar um refresco comigo, e me passar o
sabão que fosse. Isso sim eu aceitaria. Mas
ficar com tesão e sair com essa teoria de buscar outro terapeuta, isso parecia
até piada. Acho que devia ser proibido psicóloga usar mini saia, e as dela, com
as pernas cruzadas tomando notas naquele bloquinho, davam para sempre estar por
dentro da cor de calcinha que ela levava. Mas isso também já é passado. O
problema é dar voltas e voltas, e acabar caindo no mesmo ponto morto. E com
essa garota agora passava o mesmo. Ou será que ela não sabia que eu era um
homem maduro, e que o sexo na minha idade já tem lá seus pormenores? As
conseqüências nefastas dos traguinhos de Bourbon estão em qualquer duelo de
pistola em filme de mocinho, e que
brasileiro e argentino também nunca foram muito de cruzar santo, eu ainda por
cima com o agravante de estar sempre com cara de não me toque. Que faltava para
a garota encher o saco, inventar uma desculpa esfarrapada para trocar de copo e
sair contentinha com o primeiro garotão
que passasse? E assim acabei a
noite na Ricoleta, abandonado por uma louraça tipo capa de Playboy e vomitando
a bebedeira detrás de uma arvore, com o máximo de discrição possível para não
passar certificado de pinguço verde e amarelo.
O
canhão de Porto Madero
O que eu buscava era um pouco de emoção,
não venhamos com rodeios. A trepada com a garota do bar, e depois eu botando as
tripas para fora pela rua, torrando ainda por cima o que eu gastei, merecia
comemoração a altura. Minha ficha policial nunca foi manchada, sequer quando
adolescente e cheio de maconha na cabeça, os homens de ouro da Delegacia da
Hilário de Gouveia nos deram ordem de prisão. Durante o regime militar do
general Ernesto Geisel, todos sabiam de cor e salteado que cantar “parabéns pra
você” fumando jererê na rua, às quatro da madrugada, era delito que os rapazes
de classe média deviam pagar com corretivo moral no xadrez. Foi o próprio comissário
Helio Vigio, em pessoa, quem bateu o kodak de cada um de nós, segundo ele, com
revelado suficiente para que na próxima deslizada recuperasse na sua
impressionante memória visual a cara de babaca que todos devíamos ter, perfilados como
grumetes e cagados de medo que algum encarregado pegasse o telefone para ligar
para os responsáveis. Gosto de ter essas visões do passado com sabor de aventura,
sobretudo se tenho na cabeça a idéia de recuperar um pouco de energia, com
alguma transgressão daquelas que jamais sairia escrita em nenhum manual de
etiqueta para rapazes de boa família. Cheguei ao Porto Madeiro em táxi, deixei
o troco de gorjeta só para parecer que era rico. O fígado seguia dando
agulhadas, mas ainda faltava bebida para que eu pusesse um ponto final na
noitada. Tinha indicação do recepcionista do hotel, um barzinho freqüentado
pela fina flor de Buenos Aires, lugar de boêmios e de artistas, bem ao gosto
vanguardista que atravessa as madrugadas portenhas, mesmo quando o frio parece decepar
os ossos. Voltei a pensar em Clarissa, talvez Flavio tivesse dado com a língua
nos dentes, e ela intuitiva como é, pagasse o primeiro vôo, buscasse na conta
online do cartão de crédito o nome do hotel pelo pagamento da reserva, e
subornasse o chicote da recepção para pescar meu itinerário. Clarissa sempre
foi maquiavélica e podia me dar o bote, aproveitando-se do meu estado de bebum
inconsolável. Vivia dizendo que eu não sabia beber, que me passava da conta na
vodka com lima da persia, e também nos dry martinis, que sempre foi o meu drink
predileto, e que ela tratava de arruinar metodicamente, roubando a azeitona com
cara de arrogância, para frustrar meu ultimo trago. Eu não podia estar bem da cabeça, sintoma
assim é típico de paranóico, só me faltava imaginar que ela me esperava sentada
numa mesinha do bendito barzinho. Se o táxi ainda estivesse esperando, entrava
na mesma hora e me arrancava para o bairro da Boca, lugar onde seguro ela não
colocaria os pés por medo de assalto. Enfrentei a paranóia e contei até dez,
agora com ímpeto bastante para abrir a porta do bar de um só golpe.
Avancei feito entrada de mocinho em saloon
de faroeste. Um frio glacial me correu pela espinha, uma mulher de costas
levava o mesmo penteado que Clarissa, e a estatura também era quase igual. Mas
não era momento para covardia. Decidi enfrentar o problema de frente, sem
pestanejar, e tal foi o alivio ao descobrir que não era ela, que nem a feiúra
da pseudo sósia me abalou. Como estava sozinha, porque de tão feia era difícil
arranjar companhia, resolvi ser simpático e perguntar se podia sentar-me ao seu
lado. Talvez eu precise me controlar um pouco mais na bebida, já não tenho
idade para flertar assim tão sem critério, afinal ela era muito, mas muito,
muito feia. Acho até que tinha buço, os pelos nos braços mais pareciam um matagal,
além de uma pinta no canto da boca, cuja imagem meio desenfocada pelo excesso
de álcool, dava à pobre mulher um ar de bruxa, disfarçada sim, de funcionária
pública com um vestido floral de jérsei.
Dois tragos mais e logo resolvi voltar para o hotel, era melhor me
atirar mareado na minha cama kingsize e conviver em solitário com as ondas do
maremoto que eu havia montado na minha cabeça. Fora isso, também escapava de acabar
pelado nos braços daquele canhão argentino, um desproposito se nem ao menos
havia clima de guerra por alguma partida de futebol. Quando acordei no dia
seguinte, lá pelas tantas, dei graças a Deus pela prudência de pedir ao barman
que me chamasse um táxi. Escapei como o diabo da cruz quando a tal mulher feia resolveu
tocar no meu braço, e propor que dançássemos um tango bem coladinhos. O alarme de ataque nuclear saltou a todo
volume.
Repasando
contas
Não vejo motivo para esconder a
verdade. Afinal se a mentira tem mesmo pernas curtas, é bem provável que em
algum momento me atraiçoe a respeito do que me passou depois que tomei o táxi, fugindo
da feiosa do barzinho. Minha intenção era mesmo voltar direto para o hotel, não
me encontrava bem e não me ocorria nada mais criativo que a decisão de acabar a
noite babando travesseiro. E de repente, me vejo tomado por aquela espécie de
sincope. Pedi ao motorista que parasse o táxi imediatamente, assim de supetão,
a menos de duas quadras do hotel. Desci do carro com a desculpa que precisava tomar
um pouco de ar, e que não me importava fazer a pé o que ainda faltava do trajeto.
Outra vez deixei o troco como se continuasse rico, mas agora como estratégia
para evitar que o taxista viesse com algum comentário estúpido sobre o meu
estado de embriaguez. Eu me sentia visivelmente incorporado por alguma força
inexplicável. Que coisa estranha! Foi como se algum espírito do sincretismo
africano tivesse entrado no meu corpo sem pedir licença, e me convertesse no
homem mais firme e pragmático do mundo. Acho até que deixei de enrolar a língua
para dar muchas gracias y buenas noches señor. A cabeça ia dando voltas e
girando, como se a Avenida Corrientes fosse a Meca do candomblé. Pensei que se
era entidade de santo, o melhor seria acender um Cohiba e deixar que a coisa
seguisse seu rumo. Uma única idéia me
rondava a mente: seja como for, não vou manchar por nada desse mundo minha
ficha na policia, e se Deus existe, e ainda por cima é brasileiro, chegou a
hora de ele me provar porque o rogam como o Todo Poderoso. Foi baixar do táxi e
confirmar que já se afastava o suficiente para que o chofer não pudesse
rastrear meu destino pelo retrovisor, para pegar a primeira transversal e sair
caminhando em busca de adrenalina.
Quanto mais me afastava da avenida, mais as ruas iam se estreitando,
havia menos luz, e tudo parecia morto, sem viva alma capaz de julgar o que
fazia um tipo como eu, perdido por aquelas bandas quase as cinco da madrugada.
Sabia que o tempo não jogava a meu favor, e que a única opção era agir rápido,
ser criativo ao estilo bandidinho. Caso
contrário, o melhor era esquecer a idéia de brincar com o perigo ajudado pelas
forças do divino, deixar para lá o desejo quase pueril de que uma bomba de
excitação pudesse me proporcionar qualquer tipo de aventura extraordinária. E
foi amor à primeira vista, um Gol laranja anos 90, estacionado em lugar
proibido, a pintura opaca disfarçando os remendos de massa por toda a
carroceria, o pára-choque um mar de ferrugem, e ainda por cima os quatro pneus
carecas, perfeitos para patinar como sabão. De repente, Flavio ressuscitou na
minha memória, final de partida entre o Vasco e o Flamengo pela copa Brasil, eu
ali plantado com ele no Maracanã, sem poder abrir o carro porque havia perdido
as chaves de tanta cerveja e desgosto. Nunca vou esquecer meu mau humor pela
surra que o bacalhau levou do rubro-negro, e ainda por cima, preocupado com a
fortuna que ainda teria que gastar para que o reboque me levasse de volta à
casa. Mas não é que o malandro do Flavio, que nessa época ainda era o meu
melhor amigo, não abriu o quebra vento com uma chavinha do canivete suíço? Destravou
a porta enfiando o braço pelo buraco e ainda fez ligação direta com dois fios
que ele puxou detrás do volante? Pois que Deus agora me provasse que era capaz
de me ajudar a fazer tudo igualzinho ao Flavio. Queria dar uma volta naquela
banheira caindo aos pedaços, e se não me escapasse nenhum detalhe na memória, intentaria
repetir passo a passo o mesmo do dia do futebol. O quebra vento abri de
primeira com a chave da garagem de casa, dessas que são mais compridas e um
pouco mais finas que as normais. Tenho que parar com essa mania de andar para
cima e para baixo carregando tantas chaves, mas a verdade é que o meu complexo
de porteiro de edifício aqui me caiu como uma luva. O braço metido para
destravar a porta foi um pouco complicado, mas não exigiu mais de um
minuto. Pensei até que tivesse
escolhido mal a profissão de roteirista, e que meu futuro na verdade houvesse
sido bem mais promissor com vida de bandido, puxador profissional. Quanto ao
Flavio, aquela maestria toda já era sintoma de personalidade torcida, motivo
suficiente para que eu já pudesse imaginar que o sujeito levava habilidade de
crocodilo, capaz de fornicar com a Clarissa, como teve coragem de fazer,
comendo maçā assim na minha cara. Já no interior do veículo
pude descansar um pouco, tentei controlar a respiração ofegante, prova
definitiva de que não nasci mesmo para o negocio. Fiquei até triste com a
consciência de que eu não passava de um amador, borrado de medo que alguém me
pegasse com a boca na botija dentro daquela lata velha com cheiro de poeira
entranhada. A parte final custou um bocado. Tive que arrebentar a tapa de
plástico que recobre o sistema elétrico, e demorei bastante até descobrir entre
a fiarada quais eram os que eu devia dar contato para ativar a ignição na lata
velha. Uma, duas, dez, quinze tentativas frustradas, até que o ronco do motor
explodiu com sabor de vitória, meio travado por uns pinotes a causa do
carburador entupido, mas ajustado a me dar serviço na aventura de sair
dirigindo bebum pela cidade. Aquilo sim era felicidade, eu vendo tudo em duplicado,
dirigindo um carro roubado pelas ruas desertas da capital argentina. Não tenho palavras para traduzir o tesão de
pilotar a chambreca! Lembrei do filme do
Roberto Carlos pilotando baratinha, de carrinho de rolimã descendo pirambeira ,
de Cadilaque Rabo de Peixe chocando de frente na época em que a Avenida Atlântica
ainda tinha pista dupla. Pensei também no meu pai montando autorama, e dando
grito para que a gente não desencaixasse os pedaços de pista. Acho que dirigi por mais de meia hora com tudo
isso pela cabeça, perdi a noção do tempo de tanta excitação. Peguei até
contramão e rua sem saída. E tudo sem medo que algo de ruim me acontecesse,
estava seguro como uma rocha, e pude acabar minha noite sem atropelos, e com
chave de ouro, estacionado o carro no mesmo lugar proibido do qual o havia
roubado. Fui muito correto, outro talvez não tivesse se preocupado com o
detalhe de deixar uma nota de cem dólares encima do banco do carona, dinheiro mais
que suficiente para que o dono pudesse reparar algum dano no painel quando saí
arrancando tudo para fazer a ligação direta.
Poucas vezes me senti tão vitorioso e honesto comigo mesmo. Fui ladrão,
aventureiro, paguei com valor justo qualquer arremate necessário, e ainda por
cima dormi como um anjo, sem marola nem cabeça enfiada na privada para não
sujar o chão do banheiro do hotel. Quando poderia aproveitar a vida assim, se
ainda estivesse dominado pela megera da Clarissa?
O
estopim
É impossível evitar que eu me questione
se tudo não poderia ter acabado de outra maneira. Afinal, em qualquer relação o
fracasso é responsabilidade que deve ser assumida a dois, cada um com a parte
deteriorada que lhe concerne. Antes que
Clarissa saísse batendo a porta com toda aquela violência, a tensão do
bate-boca foi feia de verdade, acusações daqui para lá, tipo chegamos ao limite
e daqui não podemos passar. Ela saiu de calcinha do quarto como uma flecha e
foi se vestindo possuída batendo cabeça pelo apartamento, atormentada como uma barata
tonta depois de uma dose cavalar de inseticida. Ouvi da cozinha o estrondo da porta quase
arrebentando, tremi como vara verde e quase deixei cair e espatifar o copo de
água com açúcar, recurso para ver se me acalmava um pouco do stress da tal cafeteira
do terceiro milênio. O golpe foi tão violento, que a Maria faxineira assim que
chegou no dia seguinte, teve que sair catando pedaços de reboco pelo capacho da
entrada. De santo eu não tenho nada, caráter não me falta, sobretudo quando faz
muito calor. Passando dos quarenta graus fico muito agitado, não posso suportar
a sensação de melado pelo corpo, obcecado por um vai e vem de chuveiro como
única solução de esfriar meu temperamento descalibrado. Mas se estávamos em meados de julho, pleno
inverno e eu com pulôver e até meias de lã. A menos de vinte graus e um céu nublado com
cara de chuva, meus nervos os tinha controlados dentro do possível. Não pretendo
justificar nada, assumo a parte que me toca, mas que a Clarissa estava possuída
por algum encosto, isso estava. A história começou antes mesmo de voltarmos
para casa, depois de uma passada pelo shopping, onde é claro, ela já acumulava três
sacolinhas de sapato. Não parava de comparar os preços daqui com os de Nova
York, parecia uma máquina calculadora, programada em milésimos de segundo a
converter o valor da taxa de cambio, e aproveitar em reais as ofertas
tentadoras das liquidações de inverno.
Pois foi quase saindo para o estacionamento do shopping, que se formou o
olho do furacão. Ela parou diante da vitrine de uma loja de eletrodomésticos, e
de repente pareceu petrificada, hipnotizada por uma dessas cafeteiras de
cápsulas, das que vivem colocando o George Clooney cheio de mulheres
maravilhosas, implorando por uma bicada no cafezinho dele. A partir daí já não houve mais remédio, sem maneira
de frear a escalada esquizofrênica acelerada por uma ventania de acusações e
cobranças. Queria porque queria imediatamente
a puta cafeteira, era moderna, pratica, rápida e ainda por cima acabava com a
historia de ficar limpando pó de café espalhado pela pia da cozinha. Mas isso era só o começo. Não bastava querer
comprar uma cafeteira para ela, exigia que eu também me adaptasse ao expediente
prático da humanidade, comprando também uma igualzinha para mim. Claro que não me
deixei levar pelo jogo barato de que a minha vida mudaria com aquele traste de
desenho industrial pós-moderno. E isso foi a gota que faltava, motivo
suficiente para que a discussão começasse ali mesmo na loja, enquanto cobravam
e empacotavam o estopim da nossa separação. O bate boca se estendeu até o
estacionamento e ao longo de todo o caminho de volta a casa. Quando entramos no prédio, já havia sido
ativada a contagem regressiva para que explodisse o cinturão talibán cheio de
cartuchos de dinamite. Nenhuma palavra no elevador, um silencio típico de
funeral entrando em casa, duas horas ela trancada no banheiro só para fazer um
pipi, e começou a ladainha, que eu era um retrógrado, um insensível, sem visão
de futuro, e que além do mais, não tinha capacidade de dividir a vida com
ninguém. Fui tachado de egoísta mão de vaca e dominado pelo meu ostracismo
intelectual. Minha
estratégia nessas ocasiões sempre foi a de ficar calado, coisa que eu
hoje faria diferente se tivesse a disposição o tal sapato de salto alto para
meter-lhe sapatadas sem parar na cabeça. Juro que não tenho índole violenta,
mas Clarissa é capaz de levar qualquer um a loucura. Engoli todo tipo de
acusações e insinuações descabeladas, sintoma patente que a previsão da metereologia
para o nosso conflito emocional prometia que o furacão ganharia força. Sem mais armas Clarissa resolveu então abrir o
jogo, contar em detalhes o motivo da cafeteira, coisa que até me provoca certo
constrangimento em relatar, já que certos pormenores da nossa intimidade o
melhor é deixar guardado a sete chaves. Mas já não tenho estrutura para
conviver com tanta tortura psicológica, essa mulher é caso de internação em
centro psiquiátrico, metida em camisa de força, dopada por milhares de bolinhas
e levando até eletro choque. Preciso dividir isso com alguém. Sempre soube que
Clarissa vivia gastando um dinheiral com cartomantes, astrólogos, consultava
búzios e tarot. Marcava consultas com videntes e pitonisas, e lá estavam eles com seus amuletos cada vez
que precisava tirar alguma pedra do sapato.
Não era de falar muito a respeito, lance de mulher desconfiada, até
parecia que ao invés de ver-me como amante, me tomava por inimigo. Eu deixava a
coisa para lá e pensava, melhor assim, eu que tenho pavor até de vela com Creio
em Deus Pai
para as almas, prefiro não saber detalhes dessas peripécias de ocultismo. O que
não me passava pela cabeça era que a tal obsessão que eu também comprasse a
dita cafeteira, tivesse alguma coisa que ver com uma consulta que ela marcou com
uma taróloga, ao dia seguinte que voltamos dos States. A tal mulher, explicava Clarissa, também via o
futuro com cera de vela em copo de água. Pois bem, o furacão acabou ganhando
categoria cinco com as previsões da maldita vidente. Segundo Clarissa, minha
cafeteira italiana, conservava como relíquia há mais de dez anos, e que nunca
me causou problemas a não ser trocar de vez em quando a borracha de vedação,
tinha energia negativa concentrada. Era fruto do mau olhado de uma ex-noiva, a
Lucinha, que tinha me dado a cafeteira de presente de aniversário pouco antes
que a própria Clarissa a desbancasse com picada de escorpião, o dia em que me
conheceu na exposição de fotografias de um amigo que tínhamos em comum.
Caso eu não decidisse me livrar da dita cafeteira
maligna, o trem da vida de Clarissa seguiria estancado em sinal vermelho, como
mula empacada, fato que me colocava como cúmplice da ex-noiva baixo astral, sem
nenhuma outra opção que aceitar o modelito das cápsulas metálicas coloridas com
glamour de galã de Hollywood. Tentei
argumentar o que pude, mas Clarissa parecia irredutível, cada vez mais nervosa
e já deixando claro que não daria o braço a torcer. Eu devia escolher, ou ela,
ou a cafeteira italiana imediatamente na lixeira do prédio, única forma de
cumprir com as instruções da profetiza do copinho. Ou bem ela seguia suas indicações a risca, sem
mais nenhum contato direto com pó de café, ou pagaria caro com a vida emperrada
pelos supostos malefícios rogados pela minha ex-namorada, sua rival espiritual
de cama. Até frigidez, insensibilidade de clitóris, e possível impotência com
câncer de próstata faziam parte das previsões. A mandingueira do tarot pegou pesado! Clarissa
só podia estar louca, e eu também, por me deixar contaminar por tanto desproposito
a respeito da minha pobre cafeteira italiana. Ao ver que da minha parte a coisa
tão pouco chegava a bom porto, começou a me atirar na cara que se eu não
evitasse que ela tivesse contato físico com o pó de café, me botava na lista de
pessoas que lhe provocavam maus fluidos, e que, portanto, a coisa acabava ali
mesmo. Jamais imaginei que o colapso viesse por algo tão inusitaso. Tentei
contemporizar, ponderei que tudo não passava de auto sugestão e que a melhor
maneira de provar que aquilo tudo era uma tremenda bobagem, era que nos
acalmássemos saboreando um cafezinho na varanda do apartamento, com as xícaras de
porcelana chinesas que herdei dos meus tataravôs. Foi acabar a frase e ela saiu
como uma louca, chutando tudo o que encontrava pela frente. Salvei por milagre
o biscuit alemão do século XVIII, com a Virgem Maria e Madalena aos pés do
Cristo Morto. Mesma sorte não tive com
tudo o que estava pelo caminho. Enquanto se vestia como uma possessa precisando
de exorcismo, o furacão saiu arrasando tudo o que encontrou pela frente,
acabando o filme de terror com o famoso golpe de porta. Se ainda estivesse pagando
analise, evitaria levar o tema do café satânico para buscar alguma justificação
emocional. Contando ninguém acredita, e
com a psicóloga desvirtuada que eu tinha, isso daria pano para manga, sem chance
de buscar minhoca onde não existe. Caso
deva agradecer a alguém que Clarissa tenha saído da minha vida, o farei de
joelhos diante da minha santa e imaculada cafeteira italiana.
Pesadelo
com a ex-sogra
A Consuelo sempre me pareceu uma falsa,
nunca me enganou com a aquela mania de ficar na ponta dos pés para me dar dois
beijinhos, e depois vir com conversa mole de que foi bailarina do Teatro
Municipal. Afinal, essa historia de chamar a sogra de você é muito bonita
quando existe intimidade, jamais quando você só encontra com a dita cuja uma
vez na vida e outra na morte. É melhor manter certa formalidade quando a gente
não sabe muito bem em que terreno está pisando.
E a casa da Consuelo sempre me pareceu um pântano em brumas de sexta
feira 13, repleto de areias movediças que te engolem como nos filmes de Tarzan.
Um pouco mais para a esquerda, o tapete persa comprado numa liquidação da Rua
da Alfândega te engole numa tempestade de areia; para a direita, o sofá de
vinil te sufoca com almofadas de veludo sintético imitando pele de tigre, e que
esquentam uma barbaridade mesmo no inverno; na tua frente, a Liloca, a Poodle
Toy 00, capaz de te lamber dos pés à cabeça latindo cheia de veneno como uma histérica
castrada; e pelas costas, bem, por trás é melhor nem pensar no que viria, eu
sempre aterrorizado pela imagem macabra daquela caixa comprada na feira hippie
da General Osório, que ela tem orgulho
de botar em exposição na estante da sala de visitas com as cinzas do falecido.
Em síntese um perigo, tal mãe tal filha, e eu Ceguinho da Silva sem ver que Clarissa
era igualzinha a mãe dela, já que a maldita sogra, ela sim, nunca me enganou. Consuelo esticou tudo o que
pode e o que não pode com a conta do banco, a pensão do marido inteira torrada
em bisturi estético, e quem sabe lá que dividas penduradas da mercearia ao
açougue para retocar com plástica o que pudesse recauchutar. Com aqueles
olhinhos tão esticados que quase parecia da Malásia, ela tentava de tudo para
que eu abrisse o livro com ela. Mas eu intuía
que tudo aquilo não passava de armadilha, queria só pretexto para me dar uma
coça com vara de marmelo cada vez que chamava Clarissa na cozinha para ajudar a
colocar a mesa. Não tenho duvida, devia falar cobras e lagartos a meu respeito,
pobrezinha da filha tendo que viver tão comedida ao lado de um sujeito como eu.
Acho que a Dona Consuelo, e a partir de agora o Dona não sai mais daí, um
domingo até tentou me matar. Clarissa sabia que eu não andava fino do fígado, e
veio toda melosa dizendo que a mamãe quer fazer uma surpresa para você no
domingo. Isso eu soube numa terça, e juro por tudo o que existe de mais sagrado
que o resto da semana não botei uma gota de álcool na boca, e me limitei a ficar
de arroz e peito de frango grelhado tratando de preparar o pobre do fígado para
o que me esperava no domingo. Só eu sei o que era saber de antemão as
conseqüências da comida feita com tanto carinho pela centopéia da minha ex-sogra.
A coisa já começou mal logo de entrada, um pratinho de torresmo me esperava
encima da mesinha de centro da sala, além da hedionda caipirinha carregada de
açúcar transbordando um long neck desses de chop, evidencia de que o tranco
vinha feio, mas sem qualquer escrúpulo ou pudor por parte de nenhuma das duas.
Quem vai acusar alguém de assassinato por um pratinho de torresmo? E o que
dizer de um caldo verde com mais de quilo e meio de paio português, quase sem
espaço para boiar na sopeira? Pois foi assim como estou contando, e acabei
entrando por primeira vez na cozinha da jararaca. Ela insistia que eu provasse se o puto caldo verde
estava bom de sal, e acabava me enfiando goela abaixo duas rodelas gordas de
paio para que eu fosse tomando gosto. Entrei naquele inferno gorduroso ao menos
umas quatro vezes para ver o ponto de sal. A pressão arterial nem posso imaginar a
quantas andava com aquilo cada vez mais salgado, e eu pânico que me desse um
derrame ou um infarto fulminante, incapaz de fazer qualquer comentário, única
maneira de evitar problemas com a Clarissa por causa da Dona Consuelo. Quando
sentamos a mesa, num pestanejar eu vi meu prato fundo de caldo verde até a
borda, com ao menos uns quinze pedaços gigantescos de paio, um verdadeiro cemitério
suíno com quase nada de caldo e a couve dando a impressão de que estava ali só para
enfeitar. Não era um prato de caldo verde, era só paio, e tão pouco era paio português. Porque se existe detalhe onde os lusitanos jamais
se equivocam, é na qualidade do produto, e aquele era mais banha que outra
coisa, seguro que comprado pela metade do preço de um paio de verdade. Alguém
pode imaginar o que é durante todo o almoço ouvir o teu fígado murmurando: “ela
quer te matar, seu idiota, vai te levar diretinho para uma gaveta do Instituto
Medico Legal, o fígado dilacerado na autopsia por causa da quantidade de paio
que a sogrinha está te obrigando a comer como um babaca”. O pobre do meu fígado
não parava de pedir clemência, mas os olhos do demônio não me davam trégua, controlavam
meu prato sem que eu tivesse escapatória. “Come mais um pouquinho, querido, não
faça cerimônia!” Desgraçada! Assassina de paio falsificado! Já comecei
vomitando mal colocar os pés em casa, e tudo isso sozinho, é claro, porque a
Clarissa, já avisada no carro que eu não me encontrava bem e me vendo verde, decidiu
pular fora do barco sem dar muita explicação.
Lar
doce lar
O final de semana em Buenos Aires passou
voando. Quando me dei conta lá estava eu novamente na fila do check in,
impaciente para que meu vôo decolasse no horário, e com a maleta cheia de roupa
suja para jogar na lavadora assim que pusesse os pés em casa. Precisava
muito daquele respiro, sentir-me longe de tudo e de todos, da família, dos
amigos, até mesmo dos vizinhos de porta. Necessitava poder passar do limite sem
que ninguém julgasse se minhas loucuras eram reflexo de ressentimento, que
confesso ainda tenho em relação às coisas que tive que suportar por quase três
anos ao lado da Clarissa. Pode ser
também que tudo seja apenas resultado de imaturidade ou de falta de estrutura
emocional. Preciso colocar a massa encefálica no seu devido lugar, e enfrentar
que os problemas na vida não se resolvem com efeitos pirotécnicos. Foi dinheiro
bem gasto, e não me importa que me acusem de perdulário. E se me atirarem
pedras, tachado de inconsciente por gastar em apenas dois dias a fortuna que
gastei atolado até o pescoço naquela tremenda gandaia portenha, assumo que
jamais me passou pela cabeça medir as conseqüências de como acertaria outra vez
o fracionamento do cartão de crédito com o bunda mole do meu gerente de banco.
Não sou roteirista? Em meia hora sentado na frente do computador, já me sairá alguma
trama dessas de novela. Faço a barba, coloco uma camisa de linho branco e tento
encontrar alguma solução com ele. O vôo de
volta foi uma montanha russa, turbulência do inicio ao fim. Eu me sentia como
São Pedro nas nuvens com a chave do céu me fisgando a vesícula, mas feliz da
vida, nem me importava se um raio partisse a fuselagem ao meio. Até me fazia graça pensar que a viajem de
volta acabasse em tragédia, virando noticia de boletim extraordinário e titular
do Jornal Nacional. Qual seria a cara da Clarissa, e nem falar na jararaca da
Dona Consuelo, ouvindo a Fátima Bernardes pronunciar o meu nome com entonação
de enterro: “o corpo do roteirista Felipe César de Araújo e Lima foi
transladado essa tarde ao Rio de Janeiro, onde será velado em câmara ardente na
Assembléia Legislativa”. Viraria celebridade é claro. Pois basta morrer de
acidente de avião para que logo todas as histórias que você sempre teve que
deixar guardadas na gaveta, ou porque ninguém se interessava em produzir, ou porque
achavam muito caro, transformem um texto cheio de traças em ouro em pó. Os royalties de autor
se multiplicam automaticamente, mesmo antes que os teus ossos já tenham se
consumido para que autorizem a tão esperada exumação. Como eu gostaria de poder
ver a cara das duas sanguessugas, ao vivo e a cores? Vejo uma consolando à outra, cheias de
falsidade, buscando um jeito de representar algum traço humano no caráter de
demônio que elas sabem muito bem que a outra tem. Por sorte aterrissamos sem imprevistos
no Galeão. Peguei um táxi especial ainda
com banca de rico, e bumba, eu outra vez desmaiado no sofá cama da sala. Tinha
preguiça de tomar uma chuverada e não queria sujar a roupa de cama limpa, que a
Maria faxineira esticou sem deixar uma dobra no lençol para me receber com
cheirinho de amaciante de lavanda. Sonhei com a garota que eu amassei na saída
de emergência atrás do banheiro, a feia do barzinho de Porto Madero se metia
pelo meio vestida de garçonete, com uma coleção de Dry Martinis numa bandeja
estampada com a foto da seleção brasileira de 70. O taxista que eu abandonei antes de arrombar
o carro, agora levava quepe e gravata, tudo ajustado ao luxo da limusine que
ele dirigia, e na qual eu passeava de um lado ao outro de Buenos Aires, com
muito champanhe francês e ao menos umas quatro mulheres peladas, cada uma
lambendo uma fração erógena do meu corpo. No meio o sonho virou pesadelo,
talvez receba alguma noticia de morte, Clarissa aparecia toda vestida de negro arrastando
uma corda cheia de sapatos amarrados pelo cais do Porto Madero. Desde menino
sempre ouvi dizer que sonhar com sapato é sinal de morte, e se Clarissa aparecia
assim no meu, cheia deles e sem pedir licença para que virasse pesadelo, talvez
a impressão de que minha mãe estivesse morta quando o idiota do Lamburguini
resolveu me passar trote de madrugada, fosse alguma premunição. Quando acordei
no dia seguinte, desci pela escada de serviço para não cruzar com Dona Celina e
o Comendador Jaguaribe. Comprei o
pãozinho francês, o jornal, um bilhete de loteria pensando em tapar o buraco do
cheque especial, e decidi não telefonar para saber como se encontrava minha mãe. Seguro que anda bem de saúde, e que
essa tal simbologia de sonho é pura mitologia popular. Também verifiquei com o porteiro do prédio se
Clarissa havia passado para buscar a famosa caixa de papelão de molho de tomate.
Por sorte não me deixou nenhum bilhete desaforado, outra pagina virada. Com um
pouco de paciência vou sair dessa e começar uma nova etapa de coroa solteirão.
Essa noite vou sair outra vez bebendo como um gambá irresponsável pelos
barzinhos da Mem de Sá.
Bilhetinho
para arrematar
Acabou sendo mais forte do que eu
pensava, Clarissa. Minha intenção era colocar um ponto final com aquele
bilhetinho que deixei no fundo da caixa de molho de tomate. Mas a verdade é que
ainda me sobraram umas coisinhas para te dizer.
Não que isso agora tenha alguma importância extraordinária, tudo já está
mais que dito e desfeito, e o que sobrou é só uma questão de arremate. Você
sabe muito bem que sempre fui muito exigente com a bainha das minhas
calças. A barriga que eu ganhando ao teu
lado, e você se recorda que eu praticamente nunca comia pizza nem macarrão, não
deixa que a cintura fique sempre a uma mesma altura, e de tanto pisar na beira
da calça a barra sempre acaba imunda. Com o tempo não há maneira de evitar que o
tecido se esgarce e acabe rasgando. Pois bem, ilustríssima, a vida para mim é como
uma bainha de calça, precisa estar calculada na proporção da barriga de cada
um. Por isso, Clarissa, agora te peço que você me ajude por favor. Vamos primeiro marcar a altura da bainha da
perna esquerda, a que você sempre me disse que eu arrastava depois que levei
aquela porrada jogando pelada no Aterro com os amigos da TVE. Já estou pronto, tenho a cintura ajustada à
meia barriga, nem mais para baixo nem para cima, você sabe o quanto eu odeio o
modelo aposentado com os testículos esmigalhados num canto do gancho. Está
preparada Clarissa? Pois bem, enfia o primeiro alfinete que aqui vem o troco. O
teu tio Oscar, irmão da tua mãe, um final de semana daqueles horrorosos que
você me obrigava a passar na casa de praia em Rio das Ostras, no meio de um daqueles
churrascos esturricados com carne de segunda, se passou na cachaça e bateu com
a língua nos dentes. O teu pai, com a
cara de santo que botava em qualquer foto de família, tinha uma historia de
muitos e muitos anos com uma tal Beatriz. O tio Oscar jurou de pé juntos que era
puta, conhecida de carteirinha na zona perto de Ponta Negra, como a famosa Bibi
Camburão, com tara por qualquer macho de farda, sobretudo mulato da polícia
civil . Tinha tudo natural, do jeitinho que veio ao mundo, nem silicone nem
pele esticada, uma escultura cor de jambo quase vinte anos mais jovem que o finado
Ricardão. Tua mãe acabou sabendo de tudo pouco mais de uno depois que teu pai
bateu as botas. Foi de compras ao supermercado, aquele de esquina, perto da
casa do tio Oscar, e a dita cuja da Beatriz se exibindo com um anel de
água-marinha, igualzinho ao que a Dona Consuelo pensava que tinha sido roubado
pela faxineira do Rio Comprido. Na época despediu a infeliz e fez até denuncia
de ladra na delegacia, chamando a pobre mulher de negrinha mentirosa e só
faltando subornar algum chave de cadeia para arrancar como fosse a bendita
água-marinha. Pois bem, Clarissa, a tal Beatriz, a Bibi Camburão puta da zona,
levava o anel estampado no dedo, marca registrada do caso que levou mais de
cinco anos com o santinho do teu pai. E para que você já possa ir pensando em
enfiar o próximo alfinete, vou avançando um pouco mais no rosário. O célebre infarte
fulminante do santinho do teu pai, não teve na casa do tio Oscar jogando dominó. Foi peladão e algemado na cama, depois de
comer tudo o que Bibi lhe vivia dando cheia de pimenta , em troca é claro, de
casa com vista para a praia, comida com cardápio de badejo e filé mignon, e de tudo mais que fosse desaparecendo no
apartamento da tua mãe no Rio Comprido. Os sintomas precoces do auzheimer que
diagnosticaram na Dona Consuelo, com a ajuda daquele amigo meu que faz plantão
no hospital Souza Aguiar, era tudo fachada, história para inglês ver. Tua mãe não se esquecia de nada, Clarissa, via
tudo e ficava quietinha como um cordeiro manso. Dona Consuelo nunca teve
vocação para burra, e por quê entornar o caldo e acabar acampada debaixo da
ponte, com alguma ordinária desfrutando do bom e do melhor? E assim foi, minha
queridíssima Clarissa. Isso me faz lembrar da minha mãe dizendo, ainda moleque,
que sonhava que um dia eu fosse corredor
de formula 1. Era fá do Fangio e adorava as costeletas do Fittipaldi. Cheguei
até a pensar em pilotar carros conversíveis, tipo baratinha. Claro que acabei
não realizando o sonho dela, acho que por culpa
de ter lido tanta literatura soviética, e estudado tanto francês e inglês na
faculdade de letras. E todos aqueles quilômetros de estanterias em bibliotecas,
para ganhar com tanto sacrifício, quase como um escravo levando chibatadas no
tronco, esse salário magro de sobrevivente tupiniquim que mal chega ao final do
mês. Nem corrida no autódromo de
Jacarepaguá, nem em Interlagos, meu pódio de formula 1 acabou virando alegria
impossível para a mamãe. Minha realidade é outra, sempre equilibrado na corda
bamba entre a via-crúcis das aulas na universidade, os bicos em cinema, e os
contratos que vez por outra ainda consigo assinar como roteirista de quinta
categoria. Já o meu pai, mais pragmático e sensato, sempre me olhava com ar de
preocupado e dizia que eu tinha tendência a sentir atração por vagabundas. Que
triste é a vida! Nós dois com os pais enterrados,
sem poder contar com o apoio deles em um
momento tão especial como este! Antes eu tivesse dado ouvidos ao papai no seu
leito de morte, pedindo que Cosme e Damião iluminassem o meu caminho para
encontrar uma mulher decente e de bons princípios. Não se corte Clarissa! A
altura da bainha me parece perfeita, por favor, não vacile em colocar a ultima
marca de alfinete. E só para não perder
o fio da meada... Como a genética é hereditária, corre nas tuas veias a mesma tradição
de colocar chifres, achando ainda por cima que o cornudo jamais vai se dar
conta das tuas artimanhas. Antes de embarcar para Buenos Aires, cidade que
graças a Deus eu nunca pus os pés com você, Flavio me contou, sem entrar em
detalhes, como te saboreava no pomar de macieiras ao lado do abrigo das Agulhas
Negras. Lembra? Estamos falando de pouco mais de um mês depois que você deixou
teu primeiro par de sapatos com chulé no meu armário. Ontem mesmo tomei uma
cerveja com Flavio, queria que me desse mais detalhes. Que humilhação,
Clarissa! Jamais imaginei que ele tivesse guardado no armário dele, até o dia
que fui de viagem para Argentina, mais de vinte pares de sapatos teus. Uma
trepada ou outra mordiscando uma maça, ainda vale. Mas três anos inteirinhos de
quarta a quinta, saltando entre a casa dele, na Marques de São Vicente, e o teu
cubículo na Barata Ribeiro, isso sim já me parece falta de vergonha na cara.
Por favor, Clarissa, não se altere nem fique nervosa, o ultimo que me falta é
que você acabe me perfurando o tendão de Aquiles por descontrole emocional. Acho
que dessa vez você conseguiu se superar totalmente, chegou à perfeição. Vê como
é fácil fazer uma bainha bem feita? Daqui não sobra mais nada. Pensarei sempre
em você quando não voltar a pisar na ponta da calça, nem der trabalho extra
para a coitada da Maria faxineira, esfolando sempre os dedos para lavar na mão a barra encardida das minhas
calças. Tão pouco vou precisar dos alfinetes que sobraram, deixo todos para você.
Claro que cada um é livre de fazer o que achar melhor com as suas coisas. Mas
se conselho vale de algo, fica com a metade dos alfinetes e a outra dá de presente
para tua mãe. Algum dia meu presentinho
de despedida seguro que será de grande valia. E quando vocês duas decidirem fazer
o próximo vodu espetando alfinetes no bonequinho de pano do próximo pato que
você cace na tua vida, também não se esqueça: adoro pato no Tucupi, mas só na
panela, se tenho cara de algum bicho é de burro, não de pato. Hoje de manhā a
Maria faxineira arrastou o armário do meu quarto e encontrou uma coisa que acho
que você deixou ali. Sempre soube que você e a tua mãe eram boas de agulha. Já
mandei fazer um despacho no centro espírita que a Maria freqüenta pelas bandas
de Nova Iguaçu, com o bonequinho que
vocês duas fizeram todo alfinetado e cheio de pó de café encima, com meu nome
bordado com linha vermelha nas costas. Agora
sou um homem livre! Aproveita os alfinetes, meu amor! Obrigado Clarissa, e
muita sorte para você.
fin