terça-feira, outubro 24, 2006

Alface e lágrimas

Maria foi ao mercado
e saiu de lá carregando pouca comida.

É que faltava dinheiro,
tempo havia de sobra.

Andou, andou, fez até bolhas nos pés.
E que fique claro que o prego não foi por carregar peso.
É que Maria,
meio cara de triste, meio cara de puta,
mal conseguiu encher pela metade a bolsa das compras.
E mesmo assim porque só comprou muita verdura,
quase tudo salada,
que faz volume na geladeira,
e faz volume também na alma da fome.


José,
que já não aguenta mais o desemprego,
ficou esperando Maria voltar com sua meia sacola.
José de burro não tem nada,
sabe contar tostões como um craque.

E sabia que vinha tudo salada, volume verde da situação preta.

José olhava pela janelinha da cozinha do sétimo andar,
equilibrando a vida na ponta de um banco.
Olhava Maria, olhava a alface,
e também o asfalto, esperando que ele tivesse culhões.


Aí José e Maria sentaram os dois à mesa
e comeram em silencio, calando verdades.
O paliteiro ficou guardado,
evitando memória de carne de vaca.

Tampouco puseram guardanapos, evitando azeite.
Os palavras foram poupadas com água,
goles abundantes,
tentando disfarçar o sal carregado

pra dizer à boca que existe algo em fartura.

Mais tarde,
lá pelas tantas da madrugada quente,
Maria e José farão par no colchão de crina.
Felicidade é poder desatar toda a água e o sal da janta
em lágrimas casadas com o que vai faltar na compra do dia seguinte.