Querinin Tupi, os dez dias
por Zé Peixoto, all
rights reserved ©
O drama traduz-se em poucos movimentos. É preciso sintetizar os fatos
históricos colhidos durante meses de pesquisa. Também devemos aparar as arestas
distorcidas pela cultura oficial, a epopéia de uma nação. Nunca houve realmente
um descobrimento, tudo não passou de uma invenção homérica.
*
As primeiras naus despontam sob uma névoa alaranjada que acorda
preguiçosa, delineada pela ingenuidade do nosso horizonte recém revelado. No
alto de um monte à beira mar, um olhar pagão vislumbra igaras enormes,
serpentes demoníacas que avançam adornadas por tiras de lona branca. Ouvem-se
gritos pataxós. Muita correria com sexos expostos. Arcos e flechas bradam a
grande batalha contra o desconhecido. Homens, mulheres, velhos, crianças...,
famílias inteiras despertam o florescer da primeira infância do Novo Mundo
Tropical. Acrescentam-se alguns movimentos cruéis, medidos em fotogramas. Lanças
vazias cortam os céus.
Todos já se besuntaram em desenhos de um geometrismo ingênuo. Argila
branca, urucum e jenipapo decoram a nudez desta gente pré-Vera Cruz. A história
deslancha seu processo irreversível nos corpos pintados da figuração
impaciente. Após quase cinco séculos de história, os índios brasileiros
desvendam-se num requinte maltrapilho. É preciso decupar a cena rigorosamente.
Talvez, seja mais prudente alterar alguns trechos do roteiro evitando que o
massacre seja ainda maior.
Os homens portam iaparas e atiram uíbas com curari, muitas flechas. No
canto esquerdo do quadro uma espessa cortina de fumaça indicia a coivara ritual
para a grande batalha. Confesso que no início tive medo, mesmo sabendo que
contávamos com a experiência de um excelente técnico em efeitos especiais.
Temia que a direção do Parque Nacional não autorizasse aquele fogaréu todo em
área de reserva. Mas com tanta organização e segurança, até mesmo os guardas
florestais ficaram impressionados. Cavamos numa clareira um enorme fosso com
mais de cinqüenta metros de diâmetro.
Pilhas de pneus, cerca de duzentos, queimavam em combustão com alguns
galões de gasolina. Tudo muito controlado.
As primeiras naus começaram a ancorar atormentadas pelo fluxo e refluxo
das ondas. Da Capitania São Gabriel se observa ao longe o Monte Pascoal, a
grande itá da Serra dos Aymorés. As duas caravelas e o barco de mantimentos
ainda fazem vela a seis léguas da costa. Expectativa! É quase chegado o momento
da invenção. Num movimento sincrônico alguns batéis e esquifes avançam em
direção à praia. Nicolau Coelho deve segurar um pouco mais alto a bandeira com
as armas reais. O signo expansionista de D.Manuel I precisa ter destaque, criar
impacto no momento crucial da invenção do povo brasileiro. Afinal, rodamos um
filme de ficção histórica, não um documentário enlatado para tv. Urge a
verossimilhança! Aquele frade franciscano não pode estar rezando de joelhos
dentro do barco. Orações só em terra firme, depois de cravada a Cruz da
Purificação de Cristo e demarcados os limites da consagração cristã.
Ação! Os selvagens esperam ansiosos o momento da grande verdade. O
início da colonização européia atraca no ibiçui branco sob a forma de serpentes
d’água, bestas marinhas prontas para o bote letal em nossa verdadeira cultura.
Aproxima-se o fim da era romântico-primitiva. O cenário é trágico,
dantesco. A construção épica se deflagra na forma de um violento trovão
que explode num céu de chumbo. Os selvagens prostram-se de joelhos e a ira dos
deuses é revelada pela sonoplastia fundamental. Algumas mulheres, as mais
velhas da nação tupinik~i, choram em lamento a falsa descoberta, seios e
ventres flácidos, longos cabelos cor de pituna e olhares quase sem vida.
Abençoada pela cólera de tupãçununga, aborta-se enfim a última esperança de uma
reviravolta na trágica história das nações indígenas.
Quero repetir o desembarque, desta vez com mais realismo! Talvez, um
esquife virando pela força das ondas na arrebentação. A expressão do desejo de
conquista precisa ser sôfrega. No meio da espuma, marujos encharcados devem
puxar seus barcos quase com os dentes. A força do Rei e a força da natureza. É
o momento certo de afogar a ilusão dos espectros dourados, o esplendor do sol
não merece se refletir nas águas de um turquesa tão ingênuo. Ao invés disso,
suprime-se a calmaria delineando em poética o grande desembarque, com as
embarcações arrebentadas como escarro contra os arrecifes de coral.
*
É preciso acelerar a produção, não esperava tantas interrupções
terceiro-mundistas no set de filmagens. Time is money! Estamos parados há mais
de uma hora, tivemos outra vez problemas de transmissão de energia nos cabos
que saem dos geradores. O calor é insuportável: 42 graus à sombra. Tenho a
sensação de que a qualquer momento eclodirá uma rebelião tupi. As pessoas estão
agitadas e todos transpiram em bicas. É melhor oferecer algo de beber aos
figurantes, e que seja água de coco, um refresco na diplomacia líquida da
produção. O rapaz do cafezinho, apesar do hálito insuportável, pode contornar
bem o problema. Além da cortesia, parece ser competente no trato com todo o
pessoal da equipe.
Abás e portugueses foram re-hidratados e se respira a sensação de que
todos se acalmaram um pouco. Espero que agora facilitem um pouco mais o
trabalho dos maquiadores, desesperados em recompor desenhos que se desfazem na
medida em que os corpos transpiram.
O problema elétrico foi finalmente contornado, o assistente de direção
já deu ordem aos eletricistas que religuem os geradores. Recupera-se a estética
americana do pós-guerra, o ronco de mais de trinta quilos de corrente incendeia
com gelatina vermelha troncos e cipós no
meio da mata. Um inferno tropical de árvores frutíferas, palmeiras, bambuzais e
muito pau-brasil, tudo de plástico. É impressionante a extrema qualidade destes
artifícios cenográficos produzidos pela mesma empresa italiana que fabricou as
réplicas de armamentos iraquianos, bombardeadas pela aviação americana como se
fossem reais durante a Guerra do Golfo. Num quadro em acetato à la
Rousseau, centenas de metros de cabos, HMIs, tomadas, grampos, tripés,
magazines, câmeras, trilhos, gruas... Cria-se o efeito de estúdio ao ar livre.
As temperaturas da cor do sol e das ampulhetas de tungstênio fundem-se numa
pintura natural. A cor do descobrimento é quente como o inferno.
Seqüência 27. Mulheres cozinhando. A culinária primitiva é deflagrada em
enormes panelas de barro, esteiras de palha com folhas de bananeira, pilões de
maçaranduba... As índias mais jovens trituram mandioca num balé ritmado. O som
surdo da madeira socando com ironia a raiz branca, marca o ritmo dos risos
brejeiros, dentes fortes que insistem em debochar da vida. Ao fundo, em
silencio, as mais velhas amassam a pasta de mandioca com as mãos. O operador já
perdeu três vezes o movimento do travelling. Corte! Dessa vez tem que valer. A
panorâmica tem que partir lenta, primeiro a mãe catando piolhos no indiozinho
pançudo. Depois, recuperando sem pressa aquele índia agachada, soprando gravetos em brasa no canto esquerdo do
quadro. Quero fechar no olhar ambíguo daquela que parece ser a mãe de todos os
índios, tantas são as rugas que lhe secaram os seios, a boca, os olhos e também
a alma.
*
O trabalho foi muito cansativo. Por volta das cinco, tão logo rodamos a
última seqüência do dia, peguei o carro e saí sem destino pela estrada que
levava à cidade. Outra vez o calor era insuportável. Como num cartão de visitas
ao prazer as praias ainda esbanjavam um sol vigoroso, refletido nas areias de
um branco absoluto. O ar circulava abafado pelas janelas abertas e minhas
roupas estavam grudavas ao corpo. Numa transpiração caudalosa eu descarregava a
tensão das filmagens. Precisava relaxar.
Eu dirigia sem pensar em
nada. Sempre gostei da sensação de vazio ao volante, essa
ausência que automatiza meus movimentos e concentra meus reflexos no controle
obstinado da máquina. Minha solidão, no entanto, tinha um encontro marcado,
veio misturada de azul, verde queimado, amarelo palha e branco. Lá estava ela
sentada num barranco à beira da estrada, voltando sozinha da praia, pronta para
entrar numa cena imprevista. Parei o carro como pude. Um homem não é capaz de
resistir assim aos encantos imediatos de
uma mulher solitária. Seu nome era Lívia, viajava há duas semanas de carona
pelo Nordeste. Ainda ficaria por mais alguns dias em Porto Seguro, e só
depois descia até Alcobaça, antes de voltar para a capital São Paulo. Morava no motor do Brasil desde que começou a
cursar a faculdade de Sociologia.
Lívia era uma mulher independente e aventureira. Naquele lugar selvagem
e deserto, não teve receio algum em entrar no meu carro sem saber que tipo de
sujeito eu era. Isso me excitava ainda mais, não havia falso pudor nas suas
coxas expostas livremente. Lívia era irresistivelmente autêntica, seus gestos
sensuais espelhavam a cor de sua pele bronzeada e seus gracejos eram aquecidos
pelo quentume da paixão. O bafo do demônio se apoderava insistente da cabine do
carro.
“Como você consegue ficar de camisa?”, perguntou passando a mão pela
minha nuca e deslizando os dedos pelo meu rosto molhado de suor. Aquele jogo
inconseqüente de sedução descarada me agradava. Trocávamos olhares silenciosos
e procurávamos o momento certo de um beijo que pudesse traduzir nosso prazer de
homem e mulher solitários. Veio.
Ardente. Subitamente apaixonado. Pleno.
Tínhamos ainda umas duas horas de sol, tempo bastante para um bom
mergulho de fim de tarde em
Trancoso. Dei meia volta. Quando chegamos à vila ela saiu
primeiro do carro e desceu correndo a ladeira em direção à praia. Mais parecia
uma adolescente travessa chamando por mim com uma série de acenos e sorrisos
espontâneos.
Estacionei o carro ao lado da igreja e fui apressado ao seu encontro.
Estava nua dentro d’água, livre como se a natureza inteira fosse sua. Tirei a
roupa e mergulhei também. O contato da água morna nos alagava de excitação,
minha boca provava a delícia salgada daqueles seios e lhe explorava o resto do
corpo afogando-me em
sal.
Lívia me engolia
como uma sereia encantada. Nossos beijos espumavam as ondas numa transparência
anilada de mergulhos que revelavam nossos íntimos submersos. O sexo navegava ao
sabor da maré. Assim, acabamos atracando à pelo na areia, entrelaçados na
economia de um gozo que podia explodir a qualquer momento. Nossas peles tinham
a química perfeita daquele amor quase selvagem, irracional por conseqüência,
incomensurável. Então, o orgasmo ressoou no bramir das marolas. Estirados pela
volúpia dos nossos corpos vestidos de água, sal e areia, acompanhamos
prostrados a fuga do sol no horizonte. Uma enorme bola de fogo descia em
homenagem a lua crescente, o calor sufocante cedia a uma leve brisa trazida do
fundo do mar.
*
*
Quando a quilha do primeiro batel roçou em Pindorama quase vinte homens
tupinik~ins já esperavam na praia. Com uma câmera em plano geral e outra
cobrindo detalhes, podemos obter um bom resultado de edição. Intercalo imagens
ao plano seqüência da grua. Close nos olhos nativos, estarrecidos pelo medo da
chegada dos paranãboras. Aqueles caraíbas de corpo enfeitado em panos estavam
armados de bacamartes e mosquetes até o pescoço. Numa fração de segundos podiam
reduzir a um monte de carne podre toda aquela gente nua, de pele lustrosa e
parda, ingênua nos sexos expostos com naturalidade. Desembarcava a primeira
expedição comandada pelo fidalgo Senhor de Belmonte e Alcaide, propositalmente
planejada com diplomacia para rachar ao meio a América de Cristóvão Colombo.
Na taba escondida no meio da caátiba, o morubixaba reúne os chefes
maratecoaras na tapuia dos homens. As máscaras de guerra se fundem às espadas
de sol que atravessam as folhas de uricana no teto. No enfumaçado da pajelança
flagra-se o retrato de mais um massacre inevitável. O espírito da sabedoria e
da cura se incorpora ao velho pajé catu. Penso na Boiúna, na Caapora, no
Cururupeba, no Mapynguari, em todos os espíritos nefastos temidos por nossos
ancestrais brasileiros. Sinto o cheiro do gênio Anhangá incorporando sua
proteção à fauna e à flora. Ele está escondido nos troncos das matas, nos
quatis e iraras prenhas, nos córregos dos paranãs com suas cunhãtas banhando-se
nuas. Penso no chorar dos itús, no sussurrar do aracati, no beijo roxo de
Coaraci e Iací, no mar sem fim despencando além do tempo. Minhas entranhas
provam o gosto amargo de uma tristeza antropológica. Preciso traduzir este
sentimento - um travelling fechado nas mãos. Cada homem leva até a boca o
cachimbo da sabedoria tupi-pataxó. Devem tragar a certeza de milhares de mortes
futuras por gripes e gonorréias. Gilles me dá a garantia de um movimento lento,
tão lento quanto a erva que se dissipa no ar. Não me importo se o plano tiver
dois, três, cinco minutos. Não quero cortes. Assim posso transmitir a lenta
agonia de uma cultura dispersada no ar, cedendo ao absolutismo estético das
fronteiras da Europa Ibérica.
*
Depois da expedição à foz do Rio Cahy, Nicolau Coelho trouxe a bordo um
sobreiro de penas de papagaio e um ramal de contas brancas. Os habitantes
daquele chão, tal é o primitivismo de seus adornos, não terão de certo a mesma
resistência dos povos africanos ou do Samorim de Calicut. Os capitães observam
a tudo atentamente.
Após singrarem por quarenta e três dias o Atlântico, finalmente
foi possível tomar partilha de um trecho das Tordesilhas. Ali a ordem da
coroa não encontraria resistência. Não seriam necessários gastos com galeões de
combate nem grandes exércitos. Pedr’Alvares Cabral fora abençoado pela graça de
Deus e a desgraça dos tupinik~ins. Por fim, o Capitão-mor da armada portuguesa
tinha a confirmação tão esperada. O relato de Nicolau garantia que aqueles
selvagens espalhados pelas praias, se curvariam sem empecilhos ao régio
estandarte recebido das mãos del Rey em Belém, com o firme propósito de
conferir à Portugal sua parte na santa divisão do novo mundo.
Foi com o cair da tarde que o mar se encrespou com o vento sudoeste.
Nuvens de chumbo estacionaram carregadas de cólera sobre a Terra de Vera Cruz.
Entocados como bichos, por trás das moitas e do arvoredo na mata, mais de
quatrocentos homens espreitam as boiúnas caraíbas balançando atormentadas ao
sabor frenético do mar. Nenhuma palavra tupi, apenas olhos cautelosos de
atalaia. Vejo fusões em movimento, índios acocorados em vigília, grumetes
desesperados reforçando amarras numa coreografia de braços, pernas e gritos
lusitanos. Prepara-se a grande tempestade, o ibitúguaçu.
Duas realidades cromáticas. Na floresta, quero um efeito de luz
estourada no aguaceiro. Vejo quase um turbilhão de lágrimas de fogo ensopando
de luz mística nossa nudez ancestral. Na armada, ao contrário, a penumbra
desvenda o desespero em manter tochas acesas. Soldados e marujos se transformam
em silhuetas irreconhecíveis, recortadas apenas pela contraluz azulada de uma
tempestade que traduz o caos. Sei o quanto vou depender da sonoplastia para
obter o resultado desta cena. O vento uiva assustado por trovões, as ondas
batem nos cascos e atiram as embarcações ao destino das vagas. Uma esquife se
desgarra e se arrebenta contra a lâmina de corais. Homens ao mar, corpos
tragados. Vozerio. E em terra apenas silêncio, um profundo querinin tupi.
*
Uma série de dúvidas vêm me assaltando desde a seqüência da tempestade.
Não sei exatamente que caminho seguir. Durante a escritura do roteiro a maioria
das situações me parecia clara. E agora, algumas simplesmente se diluem numa
explosão interminável de questionamentos. Gestos se enquadram tecnicamente a
textos, os cenários ao tempo da ação, as cores e as zonas de luz à sensibilidade
das películas. A construção de cada detalhe segue numa engenharia pensada e
planejada com meses de antecedência. O movimento porém é interno e visceral.
Estou jantando no restaurante do hotel. Entre uma garfada e outra
percebo o quanto estou perdido dentro de mim mesmo. Não sei que decisão tomar,
a visita dos dois índios levados por Afonso Lopes à Capitania de Álvares Cabral
é nebulosa. Talvez seja melhor ampliar sua construção cênica e reduzir o
comprometimento das palavras. É possível que só através da imagem consiga
representar todo o absurdo daquela passagem histórica, desconhecida da maioria
dos brasileiros. Não posso perder a ocasião do deboche. Afinal, o que a
fidalguia não deve ter sentido sentada sobre aquela alcatifa tão nobre, à luz de
tochas e aos pés da imponente cadeira de Pedro? Que aversão levou os dois
aborígines a cuspir a comida cozida com fidalgo requinte, e a dispersar no ar
aquela cortina vaporizada de vinho tinto servido em finas taças de prata? Olhei
para a comida no meu prato de porcelana austríaca. Um delicioso filé rocquefort
com batatas sautés. Eu começava a descobrir o absurdo gastronômico da cena e
simplesmente abandonei o jantar. Parti como uma flecha a procura de verdades
nativas.
Devo ter caminhado por mais de meia hora. Achei o local certo para
atracar minhas angústias num quarteirão com cheiro de mijo e mulheres de
perfume barato. Em uma bodega alguns homens jogavam bilhar. Todos bebiam além
da conta e as mulheres esperavam sonolentas por clientes, fumando caladas em
mesas pontilhadas por moscas.
Uma, duas, três pingas safadas. Na vitrina gordurosa um prato com
bolinhos de aipim. Dois bolinhos, quatro, cinco cachaças. Aos poucos o álcool
começa a me abrir as fronteiras da brasilidade. Estou diante de gente simples e
autêntica. Serão eles a geração terminal dos pataxós jogando a bola 7 no 21, e
espremendo com tristeza cada dose de água-ardente no balcão, enquanto as putas
limpam restos de terra nas unhas desmanteladas de laca vermelha? Será o canto
perdido das guerras o que faz rugir no rádio esse xaxado quase fora do ar?
Serão as mesmas moscas? Serão pequis, cajuís, piquiás, magabas, miricis, abiús,
cupuaçus, taperebás, ingás, açaís, bacabas, juçaras, pupunhas, buritis,
catolés, anajás apodrecendo sobre a memória faminta de um povo?
Tudo ficou claro de repente! Os dois abás estão desnudos com seus beiços
de osso e os cabelos tosquiados acima das orelhas. Põem-se a rir em delícia com
seus mil trejeitos ariscos, mais parecem suçuarunas aprisionadas. O embiú e a
guaba que lhes foram servidos em baixelas de lei estavam podres. Eles cospem a
fina culinária e explodem em gargalhadas ingênuas. Preparadas ao tempero
conquistador da rota das Índias, toda aquela degustação de especiarias agora
sucumbe sobre o tapete real, em restos mastigados que tingem de vergonha e
espanto os olhares perplexos dos senhores de Lisboa. Pronto! Eu podia voltar
para o hotel e dormir.
*
Assim que o dia clareou, a equipe de produção começou a montagem da
primeira missa. O trabalho da contra-regra e dos maquinistas era pesado. Todo o
equipamento e a cenografia tinham que ser transportados de balsa, o que nos
obrigou a inúmeras viagens até que tudo estivesse finalmente pronto no ilhéu.
Ao contrário do que prega a cultura oficial, a liturgia de Frei Henrique
Soares não foi acompanhada pelos nativos, que insistiam em passear aos bandos
ao longo daquelas praias selvagens. Sequer os mercadores, carpinteiros,
ferreiros, torneiros, caldeireiros, soldados e toda a marinhagem portuguesa
fizeram parte da cena. O Ilhéu da Coroa Vermelha foi muito mais que um porto
seguro. Era a geografia de um missa professada aos limites do pensamento
dominante, o mesmo que ao longo dos últimos séculos arrasou nossas florestas,
dizimou nossos índios, vasculhou as serras a procura de ouro e esmeraldas,
desbravou o sertão regulando a derrama, aportou navios-negreiros no espólio da
escravatura e massacrou ideais libertários com a mão de ferro do Império
soberano.
A panorâmica é feita de um ultraleve em vôo rasante. A imagem vista de
cima revela a imponência de um momento único e inadiável. Batéis aportam num
desfile de capitães, pilotos, sacerdotes e padres franciscanos, a mais fina
flor da realeza. Nas mãos de Pedro a bandeira da Ordem da Cavalaria sob a
efígie de Cristo.
Pelo walk-talkie tenho a
confirmação de que a tomada aérea foi perfeita. Valeu! Podemos finalmente
entrar no ilhéu com as câmeras e o resto do equipamento.
Faz-se um silêncio absoluto sob o altar. Todos escutam as palavras do
padre vindo de Coimbra, mergulhados na inebriante mirra do incensário. Aires,
Simão, Sancho, Bartolomeu, Diogo, Nicolau, Pero, Afonso, são os Correia,
Miranda, Tovar, Dias, Coelho, Escobar e Lopes elevando suas preces à Roma e ao
Algarve. Cálice e pão simbolizam nos céus o sangue e a carne do Cristo.
Profetiza-se na síntese da cruz a grande síndrome da humanidade.
Todos aqueles homens estão atônitos diante de um aspersório perdulário
atirando água-benta ao solo pagão. É a certeza de uma grande vitória em nome do
Rei. Efetiva-se o batismo do “Mundus Novus” lusitano aos pés do sacramento
apostólico romano. Pedr’Álvares Cabral é absorvido pelo fervor da oração.
Afinal lhe foi concedida à luz da história, a honra de ser o homem a lavrar com
sua honra a certidão de batismo da nova terra.
Até que a vazante no ilhéu os permitisse, jogaram-se todos pelas areias ouvindo a história do Santo
Evangelho. Quero a imagem
centrada em dois homens: Mestre João e Pero Vaz de Caminha. O primeiro, descobridor do
Cruzeiro nos céus antárticos, preocupado apenas no recolhimento diplomático da
cena em avaliar os 56 graus tomados a altura do sol, 17 graus abaixo do
Equador. Vaz de Caminha, por sua vez, observa atento cada detalhe imerso na
precisão de sua reportagem histórica.
O bacharel em artes e médico-cirurgião de Sua Alteza, Mestre João, se
esquecia das conquistas da cartografia ibérica deslanchada pelo astrolábio do
barbarismo árabe? Escrivão da futura
feitoria de Calicut, Vaz de Caminha tinha consciência do poder de sua pena de
pato caligrafando em negro os pergaminhos do relato oficial da invenção do
Brasil? Homens absolutamente
fundamentais.
Talvez decida incluir passagens rápidas e silenciosas destes dois
personagens. Mestre João me aparece debruçado sobre a carta celeste, observa
estrelas em céu aberto no chapitéu do navio, debilitado pela erisipela que lhe
maltrata cada dia mais as pernas sob o calor compulsivo dos trópicos. Fusão. Na
cabine à luz de velas Caminha rabisca com primazia palavras sinuosas. De suas
mãos brota fluente o texto que apaziguará as fronteiras conflituosas de Lisboa
e Castilha comprometidas desde que Colombo avistou no Caribe o Guanahani.
*
A floresta mergulhou numa tristeza profunda. Querinin tupi. As plantas,
os bichos e sua gente percebem que os caraíbas chegaram para ficar. A câmera na
mão passeia livre, homenagem à Glauber Rocha. O tropeço passa a ser proposital.
Macacos, quatis, iraras, gambás, antas, veados, cobras, jabutis, tamanduás e
onças se escondem no crepúsculo da mata. Os guerreiros pataxós têm o corpo
inteiramente encoberto pela negritude do jenipapo e se camuflam pendurados na
copa das árvores. São a imagem viva dos espíritos protetores. São mil
zarabatanas de bambu apontadas na direção dos invasores fundeados ao largo dos
recifes já em poder da Europa. Os dardos de fibra de palmeira apontam a
curarina paralisante e mortal.
No ocaruçu deserto ecoa o choro de uma nação. Os homens não saíram para
a embiara. As mulheres não prepararam a pasta de typioca nem alisaram o cabelo
dos piás com óleo de coco. Ninguém catou quiiba no outro. Ninguém fornicou.
Todos estão sitiados nas tapuias, quase uns por cima dos outros.
Não existe mais continuidade. Quero sobrepor flashes, chicotes, imagens
simples, gestos naturais de um passado onde a alegria transbordava em pés
descalços e dançava na ocabytera. Era o tempo da felicidade. Era o tempo de
Pindorama. Mas esse tempo acabou, agora a noite esconde os obajaras.
No centro da ocara uma grande fogueira queima a última tentativa de
afastar os demônios. A morte está ancorada a dez braças, a pouco mais de meia
légua da costa. A praia é agora a fronteira do inferno.
*
No dia seguinte, junto com a tristeza do sol nascendo encoberto pelas
lágrimas doces de Jurupari, a marinhagem começou a desembarcar com alfanjes e
espadas afiadas. Dividiam-se em pequenos grupos que tomavam posições
estratégicas ao longo da praia. Alguns
deles, ressabiados pelo silêncio da natureza em luto, logo se embrenharam mato
adentro montando guarda aos dois carpinteiros encarregados de esculpir a santa
cruz da invenção. Desta vez os domínios não seriam demarcados pelo tradicional
padrão de posse, gravado em pedra com as armas de Portugal.
No meio da floresta, tão logo elegeram a madeira mais nobre, capaz de
resistir em cruz ao tempo da história, vieram as machadadas secas que fizeram
revoar socós, tapucurus, curicaras, jaçanãs e taquiris num vôo desarticulado e
nervoso. À cada batida árida e cortante era como se o útero de todas as mães e
mulheres tupinik~ins, também estivesse sendo ceifado. Na dor pura e imaculada
que ainda sentia àquela gente nativa, viam sangrar do ventre da selva a seiva
de uma terra agora sem futuro. Não muito longe dali, rebatendo o eco metálico
dos machados em suas barrigas, mães atiravam filhos despencando falésia abaixo num
coral de choros, capaz de trazer do fundo da alma a mais cruel de todas as
dores.
Corte seco. Montagem paralela. Os homens tupinik~ins ficaram sem alma.
Alagados pelo álcool das uvas tintas que os vinhedos do Senhor Jesus apregoaram
como sangue no cálice cristão, mais de quatrocentos abás deliram bêbados e
cambaleantes pelas praias outrora virgens. O riso flui na debilidade da
inconsciência, a infância traga a maturidade da sabedoria milenar e os músculos
relaxam as armas. A oferenda integral de um povo se dá de forma pacífica.
*
Mais um dia e tudo estará terminado. Sempre que um trabalho vai chegando
ao fim sinto este mesmo vazio, uma espécie de depressão que me atira de frente
contra um mundo cheio de incongruências das quais sei que faço parte. Questiono minha culpa por não ter sido capaz
de me aproximar ainda mais daquilo que chamam de verdade. Minha vontade nessas
horas é de começar tudo outra vez, do início, provavelmente procurando reciclar
meus medos em uma nova leitura. Minha vontade nessas horas é de fugir, deixando
para trás qualquer traço que um dia possa me obrigar a enfrentar minha omissão,
simplesmente por permitir que o esquecimento ou a dúvida se transformem em
pecado.
Procurei me esconder por trás da bebida, uma garrafa de uísque quase
inteira. Dormi com uma mulher de quem
não consigo mais me lembrar o nome. Sei que foi paciente, as mulheres sem nome
precisam de muito estomago para suportar a homens bêbados, ainda mais se são
roteiristas ou diretores de cinema. Na verdade eu não era capaz de satisfazer
nem a mim mesmo, quanto mais a uma prostituta colada à hora do período no
relógio da mesinha de cabeceira. Não me recordo, mas é possível que entre uma
trepada e outra, tenha lhe pedido alguma opinião a respeito de algum trecho do
roteiro. Isso acontece quase sempre quando bebo demais durante as filmagens.
Acordei no dia seguinte com a cabeça pesando toneladas. Tomei duas
aspirinas e guardei por cautela mais uma cartela inteira no bolso do colete.
Hoje os portugueses levantariam a cruz e singrariam rumo à Calicut, gerando
dúvidas suficientes para que minha dor de cabeça persistisse até o final das
filmagens. Já no café da manhã meu estômago ressentia as conseqüências da
bebedeira, contorcendo minhas idéias numa angústia que me deixava aterrorizado
sem saber o desfecho de nossa história. Talvez tenha bebido por punição aquelas
duas enormes xícaras de café, que me batiam ardendo nas úlceras e supuravam
minha última membrana de indianismo. Fui ao banheiro e vomitei quase tudo o que
ainda tinha trancado dentro de mim. Diante do espelho enfrentei meus olhos
empoçados de vergonha e descobri lágrimas, poucas mas verdadeiras. Encharcando
o rosto com água e sabão, refiz minha fisionomia escondido por trás de um homem
frio e meticuloso, pronto para entrar em cena. Eu
podia dirigir o fim.
*
Ação. Reação inócua. O músculo retesado de vinte braços portugueses
estende o cordame amarrado à cruz içando por etapas o madeiro da redenção.
Takes de pés resvalando na lama, coxas contraídas, dentes cerrados em fé, olhos
cansados em frestas, peitos delineados feito couraças, homens enfrentando de
frente um vento avassalador que atira no ar milhares de folhas em redemoinho. O grito
rouco e compassado do carpinteiro embala abafado a subida da cruz. O símbolo
foi fincado e o solo não é mais pagão.
A câmera vasculha 360 graus. No visor o primeiro desmatamento circula a
clareira aberta no meio da mata. Troncos mortos se espalham pelo chão dando
destaque sublime ao marco da invenção. Onde foram parar os verdadeiros filhos
desta terra agora abençoada? Porque o silêncio parece tão soturno depois que a
vida fugiu assustada para o coração da mata, lamentando ter perdido seu hábitat
de sonhos e mergulhado na escuridão de um realismo insípido? Corte. Querinin
tupi. Que-ri-nin-tu-pi.
Nunca mais nenhum índio foi visto. As caravelas se estufaram e partiram
na direção de Calicut, vomitando seus canhões assassinos contra a rebeldia do
Samorim das Índias. Quando as últimas
velas despencaram no horizonte nada mais havia por fazer. Apenas esperar o
resultado. Apenas esperar. Corte final.
*
Acordei cedo. Não podia resistir à curiosidade de ler nos jornais o que
críticos cometavam sobre o filme. A noite de estréia foi um sucesso. Gente
elegante, beijos, abraços, drinques, canapés, rádio, jornal, estrelas,
técnicos, televisão... Mas como sempre a surpresa podia vir no dia seguinte
recheada de alfinetadas, pormenorizada em detalhes que alcançavam um resultado
aquém do necessário para a realização de um bom filme.
Levei quase toda a banca de jornais para casa e li cada linha com a fome
dos julgamentos imprevisíveis Alguns artigos foram menos cruéis, outros
simplesmente ignoraram minhas polêmicas e me rotularam como dono de um olhar
pretensioso sobre nossa história. Recortei cada um deles para que mais tarde
não me esquecesse de quem sou. Talvez dentro de algumas semanas me recupere por
completo desse desânimo que a falta de reconhecimento à cultura nos provoca
quase como norma nesse país. Por enquanto, sento apenas uma amargura profunda,
uma dor sutil de abandono, uma rejeição conjeturada nas evidências de uma arte
monopolista. O melhor alívio será dormir um sono profundo. Dormirei por quase
quinhentos anos embalado num imenso Querinin Tupi. O tempo passou e hoje
acordei refeito. Ação!
fim
Um lapso de tempo
por Zé Peixoto, all
rights reserved ©
O dia amanheceu nublado, o frio entrava no quarto
através de frestas no portal da janela. As cobertas não serviam a grande coisa,
há meses que pedaços de
argamassa se desprenderam da madeira, em fendas que até então não me dispus a
reparar. Os telhados esboçavam lá fora
um desenho esbranquiçado, a nevada da madrugada havia pontilhado pequenos maços
de gelo num universo de telhas envelhecidas. Das chaminés, uma fumaça fina
descarregava no céu cinzento o refugo do aconchego e do calor dos lares. Jamais
o frio me pareceu tão cruelmente sensato.
Diante daquele espetáculo congelado em rara beleza, a
vertigem de praias encharcadas de sol tropical, adornadas por corais afiados e
coqueiros sonolentos, explodia em minúsculos fragmentos do mais alvo cristal.
Fugia-me o turquesa dos mares, uma geleira de saudades derretia, em síntese,
meu próprio sofrimento. Cada vez que tentava me recordar de minha terra natal,
o índio que vivia dentro de mim sufocava lentamente, um vazio glacial passeava
meu estômago.
Permaneci por um tempo de pijamas ao lado da janela,
estiletes gelados me alfinetavam a pele ainda morna da cama, o silêncio era
perpendicular no quarto fechado. Uma luz diáfana atravessava a transparência
das cortinas brancas, e despejava nas paredes, nos poucos móveis, em cada
objeto que eu tanto conhecia, uma névoa de acordar com os olhos semi-abertos. O
choque poético da neve, extremamente alva nos telhados, invadia-me as retinas,
franzia-me o olhar ainda preguiçoso. O mundo resistia inabalável, submisso a um
céu insípido, absolutamente austero no espectro melancólico dos cinzas. Eu
havia acordado igual ao mundo, meu olhar tinha gosto de solidão e tristeza, um
mergulho de emoção suficientemente rara, capaz de me fincar estático ao pé
daquela janela. Não me dava conta da melancolia, e o frio tão pouco me
importava. Persisti inebriado naquela moldura envidraçada de cristal bizotado,
protegido por uma tênue cortina de sonhos. Era como se o tempo de acordar não
chegasse nunca mais, minha silhueta alí plantada havia se tornado apenas um
refúgio solitário numa fresta misteriosa. Eu podia observar o mundo em segredo.
Um pardal surgiu de um vôo sem origem. A abriu asas
majestoso e brecou o ar, planou lentamente até encostar suas garras num canto
de telhado de um dos prédios. A solidão daquela ave também invadia meus sonhos.
Éramos três: o mundo, o pássaro e o meu ostracismo. Quando menino, seria bem
provável que todas as manhãs o levasse migalhas de pão sobradas à mesa, e
também algumas sementes de maçã quando houvesse. Na ingenuidade da infância o
alimentaria e ganharia por fidelidade sua amizade. Hoje estava seguro, que o sofrimento
lento, minha friagem de alma e de abandono, logo o fariam bater asas e partir sem destino para sempre.
Aquele pardal deixaria nos céus, onde ao homem só foi dado o direito de voar em
pensamentos, apenas um rastro maior de liberdade que eu era incapaz de
alcançar. Como foi profundo o silêncio daquela nossa convivência tão
efêmera! Podia ouvir minha respiração
agonizante, um compasso condensado que me fugia das narinas, e se dispersava em
fuga radial ao bater contra o vidro da janela. Num gesto de paixão
incontrolável girei a maçaneta, abri suas duas folhas e expus meu peito ao
mundo, atacado de frente por um frio cortante que me bateu no rosto. Por fim,
talvez chegasse o momento de acordar para a vida. E o pássaro? Partiu em
direção ao futuro sem deixar vestígios.
Tomei uma xícara de café bem quente, com duas fatias
de pão de centeio e uma lasca de gruyère. Não tinha fome, mas precisava colocar
alguma coisa no estômago. O gosto de vodka ainda resistia num hálito forte que
exalava a noite anterior. Acho que me tornei dessas pessoas que não podem tomar
o primeiro gole. A idéia de ser irremediavelmente fraco, submisso ao ímpeto de
balcões e mesas de bar, sufocava-me diante da impossibilidade de voar
livremente como o pardal da minha janela. Precisava mais do que nunca de um
gole, que me descesse quente pela garganta e revigorasse meu ânimo numa
excitação controlada.
Havia muita desordem, há semanas o desleixo tomava
conta de toda a casa. A pia da cozinha transbordava em pilhas de pratos sujos,
um bordel de louças, talheres e copos, de caixas e latas. No quarto, um cemitério roupas espalhadas
por toda parte, na sala um dispersar de livros
e jornais conjugado a cinzeiros entupidos de guimbas. Eu não podia parar de fumar compulsivamente,
a nicotina dos cigarros sem filtro deixava manchas amareladas na ponta dos meus
dedos, o fumo tinto de alcatrão me arranhava os pulmões. Acendi o primeiro
cigarro do dia e explodi num pigarro
seco, coisa que me incomodava há meses. Expulsei no ar uma baforada plena de
agonia, a cozinha mergulhada na mesma luz diáfana do meu quarto, mas desta vez
eu já estava desperto.
*
Vesti a primeira roupa que encontrei tirada na
poltrona do quarto, saí ainda meio zonzo pela preguiça da primeira hora,
precisava caminhar um pouco. Ao descer as escadas, cruzei com a velha
vietnamita segundo andar, a que sempre me cumprimentava num francês quase
incompreensível. Seus olhos brilhavam como se a vida não passara de um lapso de
felicidade. Tentou me esboçar um sorriso encardido, seus dentes eram tão negros
como a mais obscura das noites sem lua.
Alguns vizinhos do prédio murmuravam que aquelas mulheres orientais,
pois eram três irmãs, passavam os dias a fumar ópio deitadas em esteiras de
seda, por horas a fio estiradas com o olhar fixo e vazio, entregadas a um
ritual de extrema solidão e renúncia.
Alcancei a rua ainda deserta, no relógio descobri ter
dormido apenas quatro horas. Talvez, por isso aquele formigamento nas pernas,
uma agonia que se opunha ao desejo ardente de caminhar sem rumo, sem propostas
nem idéias, só de chegar a algum lugar onde por fim me sentisse inteiro
novamente. Caminhei sem sossego por mais de uma hora, atravessei ruas e avenidas, fugi de olhares vigilantes, dos que podiam avaliar o
limite das minhas incertezas, senti-me anônimo e fugitivo por bulevares vazios,
perdido numa Paris sem sentido de referência. Um grupo de homens descarregava legumes e verduras numa
quitanda, do outro lado da rua, eu os observava a trabalhar como máquinas
suadas. De assalto, a sirene de um carro de polícia, a grande velocidade,
encheu a calçada de urgência e perigo. O mundo tinha dado seu primeiro sinal de
crueldade. Quem sabe procuravam por algum traficante, ou por trás de um tapume
grafitado nos squats de antilheses, tivessem encontrado o corpo de um imigrante
adolescente, morto de over-dose por uma picada de heroína? Tantas coisas eram
possíveis... O tempo insistia em escoar a passos
lentos, e encontrei finalmente um banco num parque pontuado por
esculturas de bronze, próximo ao Rio Sena. Contemplo a uma mulher que caminha
com dificuldade, verte milho aos pombos arqueada pelo cansaço de uma vida de
penúrias. A cada parada, ela retira de
um saco quantidades fartas de alimento, amparada por uma virtuosa bengala
esculpida em cedro-rosa, que lhe ajuda como alicerce a suportar o peso da
idade. Centenas de aves cortejam aquele passeio agonizante, comandado por um ritual de cobiça e luta por
sobrevivência de centenas de pombas. A tristeza da velhice esta ali estampada,
por trás de uma silhueta toda em negro. Certamente os filhos lhe abandonaram há anos, e sem ninguém,
instalada em um quarto minúsculo com cheiro de mofo e gordura, passe as noites
ansiosa por logo clarear o dia, para poder encher o tempo alimentando aquelas
aves. Do meu banco observava tudo em silêncio. A ração minguou em parcos lances de despedida,
e atarantadas de desgosto, as aves começavam a renegar sua velha companhia, e
se dispersavam. Subitamente, a velha alçou sua bengala, e em movimentos bruscos
no ar, espantou o bando numa revoada que desenhou nuvens aladas no céu. Tomou solitária o caminho da rua, e desapareceu por
trás de uma esquina. A musa dos pombos havia partido, e com ela a esperança de
que o tempo jamais massacraria meu rosto com rugas, nem teria as pernas
entupidas por flebites. Eu não tinha nada mais que fazer ali.
Deixei-me seduzir pela magia do
Sena, caminhei em direção
a suas turvas. Por quantas vezes me encontrei à beira daquele rio, cantado em
verso e prosa, atravessado por tantas estórias de amor e ódio, de sangue e
liberdade, de homens bravos e célebres? Por quê o encanto daquelas águas
contagiadas pelo progresso, e frias de esperança, fluindo magnânimas numa
corrente de histórias que me emudeciam? Gritei! Detonei na garganta um som
rascante que libertou meu silêncio mais primário. Senti-me vivo, externei finalmente
algum sentimento verdadeiro. Surpreendo-me com um vendedor de castanhas que
acende o braseiro, balança ritmado
sua ventarola de palha. Olhou-me com a reprovação de um ato indigno e selvagem,
seguro pensou que eu estava louco.
Inabalável e pleno, certo de ter manifestado algo vertiginosamente
humano, prossegui indiferente pelo calçamento de pedras ao longo do rio. À
frente, avistei uma peniche a navegar silenciosa. Marujos jogavam fartos baldes d'água no
convés, esfregavam o chão do barco em
uma faxina gelada. Aqueles homens também
partiriam para sempre, desapareceriam aventureiros por trás de um rastro de
espuma encardida, talvez com destino incerto rumo à portos distantes. Os
marinheiros são homens sem terra que se identificam com a suprema liberdade dos pássaros.
Volto a ser surpreendido, uma prostituta me pede um
cigarro. Com os braços cruzados pelo rigor do frio, ela se aproxima com sua
maquiagem carregada e vulgar, já desfeita pelo trabalho duro da noite. Àquela hora da manhã, traçava em baton e
rouge a decadência de um retoque arruinado a cada cliente. Procurei ansioso
pelo maço nos bolsos do casaco, penetrei em silêncio seu olhar triste e
cansado. Estava viva e conseguiu sobreviver a mais um dia. Superou o risco de
ser esfaqueada por um maníaco no cais deserto do Louvre, e de acabar boiando
naquelas águas alagadas de historia e arte. De que matéria será feito o coração
das prostitutas? Como devem sofrer anônimas, todas estas mulheres marcadas a
ferro e fogo na pele, pela contabilidade milenar do vil prazer? Tive vontade de
beijá-la, mas ao lhe acender o cigarro, refleti no quanto poderia ser cruel que
pensasse que também por aquilo teria um preço a pagar. Parti sem expressar
nenhum desejo. Mais à frente, ainda pude vê-la parada, fumava com sofreguidão
seu último cigarro antes de mergulhar no sono diurno das mulheres da noite.
*
Revolvi o passado a procura de alguma passagem
importante da família. Dia 5 de janeiro de 1878, os lampiões de azeite circulam
a luz difusa de uma lua nebulosa. Vislumbro
a Blanche muito pálida, agarrada ao seu filho no colo. Caminha como
louca pelas calçadas desertas de uma primavera ainda em botão, ao longo do cais
deste mesmo rio. Protegida por uma grossa
manta de lã, da qual pendem bordadas em ouro as iniciais B.G.D., a
criança chora abafada contra os seios da mãe. Não compreendo a razão daqueles
passos atirados em delírio, existe algo que me escapa. O coração disparado de
Blanche soluça em batidas desenfreadas, a emoção parece haver chegado ao
limite. Jamais ninguém compreenderá completamente o significado das palavras
deixadas naquela carta. Em apenas uma página, Pierre Flament revelava o grande
amor que sentia por ela, uma caligrafia desenhada em pena e sofrimento. Naquela
tarde de primavera, ao entrar no quarto alugado pelo amante à Rue du Chemin
Vert, o corpo de Pierre jazia sobre a cama numa rigidez plácida. Ao não poder
assumir o filho tão desejado, teve como única saída aquele frasco de arsênico,
colocado ao lado do coração num gesto desesperado de adeus, extremada dor de um
poeta ao ver sua honra pisoteada por todos. O declínio daquele jovem promissor,
cruelmente deserdado pela família, privado dos amigos e da carreira, como se
pestilento devesse ser renegado às masmorras, teve como ápice o expurgo de sua
alma. A tinta negra rebuscou algumas frases tingidas de dor. Por fim, a morte
roubou-lhe em versos seu último suspiro. Blanche não sabia o que fazer diante
da morte de todos os seus sonhos.
Agora, Blanche
aflora sua trágica historia de amor num caminhar desesperado rumo ao
Pont Neuf. Também precisava fugir e sufocar a desonra. Encostada à mureta da
ponte, com o filho de Pierre apertado contra o corpo, debruçou-se absorta sobre
a beleza do Sena que fluía sereno em direção ao mar. A vida alcançou a fronteira da angústia, todas as portas
estavam fechadas para sempre. Desesperada, abraçou o pequeno Antoine e pensou o
que seria dele se tudo não tivesse tomado um rumo tão trágico e doloroso.
Sequer Monsieur Vladmir Astoff, tutor de Blanche desde a morte de sua mãe, poderia
ajudá-la diante do escândalo daquele filho bastardo. Nem mesmo aquele homem,
que desde menina aprendeu a respeitar por sua retidão e virtuosidade, podia
evitar o coração frígido pela vergonha do pecado. Ao se despedirem para sempre,
naquele entardecer alaranjado de primavera, o olhar gelado de Astoff podia
traduzir os invernos rigorosos das longínquas pradarias da Prússia, que um dia
Blanche, ainda menina, teve que abandonar às pressas, fugindo da guerra.
Revelava-se no adeus de Astoff, até que ponto o fruto da paixão proibida de
Blanche e Pierre deveria ser punido por todos. Ela sabia que ninguém mais como
Pierre, poderia acariciar seu rosto, de pele tão branca e sedosa, como a mais
fina das porcelanas chinesas. Todos a
haviam abandonado. Estava absolutamente só.
O mergulho foi então inevitável. Apenas o manto ainda
podia ser visto a flutuar, alguns metros rio abaixo. A poesia tragou a Blanche
e a seu filho num passe de tragédia. Dei
meia volta à procura da prostituta, mas ela também havia desaparecido. Minha
duvida era se junto com as lembranças do passado, igualmente não decidira rumar
em direção à Mancha, atracando disforme em alguma praia deserta do Havre. Suas meias de rede de seda preta ainda vivem na minha
memória, ficaram guardadas enquanto eu contava o tempo da morte.
Atravessei o Pont Nuef. Procurava ansioso por moedas
nos bolsos, para tomar ao menos um conhaque, precisava desafogar minhas visões
alagadas de tanta tragédia. Avistei
minha fraqueza num bistrô de quinta. Ao
cruzar a porta do bar, um forte cheiro de vinho quente inebriava o salão,
apenas um homem com porte de estiva lavava copos, detrás de um balcão. Pedi a bebida em voz alta, a vergonha
de me entregar ao álcool devia passar desapercebida àquele garçom desconhecido.
A aguardente de uva lambeu como fogo cada víscera, descendo seca em um único
gole. Quando chegou ao estômago a bebida fermentou ainda mais meu coquetel de
angústia e derrota. Tinha consciência do meu absurdo, com as mãos ainda
trêmulas eu não passava de uma fisionomia saturada pela bebedeira da noite anterior. Coloquei as três pratas de
um franco sobre o balcão, e um estalido metálico revelou a dimensão de minha
miséria. Contas se amontoavam atiradas nas gavetas, o dinheiro minguava todo em consumir cocaína, na bebida e em cigarros. Minha
garganta ardia em brazas, motivo para evitar a clemência de um outro conhaque
por cortesia. Voltei a viver na rua o retrato do frio do mundo.
Caminhei com pressa até o metrô. As escadas rolantes
pareciam que me levavam ao inferno, desciam vertiginosas àquele mundo apressado
de trens, corredores, publicidades e
multidões num atropelo de colméias. Introduzi meu bilhete laranja na roleta e
constatei tê-lo perdido para sempre. O que me passaria se não voltasse a ter
dinheiro para comprar um novo passe? Atravessei autômato o tempo dos
compromissos, perdido por corredores entupidos de gente organizada. Avistei em
uma curva a um jovem albino a tocar uma polca com sua harmônica, acordes que
abafavam com musicalidade o frear frenético, e o abrir e fechar de portas dos
vagões aportando na estação apinhada. Corri para não perder o trem, e cabei
atirado, sem perceber, numa arena de olhos amassados por cotovelos e hálitos
insuportáveis. À espera de um próximo desembarque, todos roubavam um olhar em segredo. Não
suportaria encarar alguém tão de frente, sentia fibrilar meus olhos a procura
de algum ponto inumano na escuridão.
No breu absoluto do túnel, apenas o sobressalto de um trem, cruzando
em sentido oposto, me permitia constatar aquela realidade estroboscópica sem
definição de rostos nem olhares.
São 10:20 da manhã. O trem prossegue no ritmo dos horários precisos, mais uma estação, Les
Halles. O mundo inteiro já
está desperto, no imenso corredor em direção à Chatelet as esteiras mecânicas
transportam em via dupla milhares de pessoas, quase formigas. De forma exótica, em enorme cartaz, uma
mulher cibernética, mãos apoiadas à cintura e pernas sensualmente abertas em
triângulo, observa do alto de um
canyon um carro último tipo. Lembrei-me de novamente Blanche com seu filho, da
prostituta e do rio Sena em direção ao mar. Foram várias estações até chegar em
casa, os segundos eram eternamente longos, e definiam o fim daquela viagem em
cada porta, cada soleira, nas árvores nuas, no comércio, na banca de jornais,
em cada semblante cotidiano. Só então me dei conta do quanto tinha caminhado,
quão longa tinha sido aquela procura por um lugar que na verdade não existia.
Faltavam-me ainda duas quadras, e meus pés queimavam como brasas, sem forças
para nem mais um passo. Cheguei finalmente a portaria do edifício, meu reduto
de desordem e caos, mas com surpresa, diante do porteiro eletrônico do prédio
descobri ter-me esquecido do código de acesso. Atônico e inerte na construção
de um simples número, precisava abrir minha penúltima porta. Digitei uma
combinação qualquer, e nada. Por um instante pensei em derrubar a porta aos
murros e pontapés, minha fragilidade
era um castelo de cartas que a qualquer minuto podia desabar. O tempo parecia
escorrer vazio, até que no ilusionismo
de um teatro de sombras, o oriente descerrou a porta num louco sorriso negro. Revelou-se com
placidez o olhar de uma das velhas vietnamitas. Aproveitei o tempo da fuga e
entrei apressado no hall. Um forte cheiro de erva impregnava o ambiente
mergulhado em penumbra, até que apertei o interruptor da luz para definir meu
regresso. Faltava pouco. Ao pé da escada, como fazia nos últimos meses, fui à
caixa do correio à procura de cartas que nunca chegavam. Não conseguia recordar-me
da última vez que recebi notícias dos amigos e da família. Abri a portinhola e
com surpresa descobri uma carta timbrada, endereçada em meu nome. Rumei escada
acima, enquanto retirei diligente do envelope uma folha de papel em tom
amanteigado, envolta cada vez mais num cheiro penetrante de erva e rezina. Não
podia ser verdade. Aquele centro de reabilitação, visitado a procura de emprego
no último verão, solicitava minha contratação para o tratamento psiquiátrico de
adolescentes.
Cada palavra, cada vírgula, não faziam sentido naquela
manhã tão sofrida e lenta, na agonia de imagens dispersas e atormentantes que
me haviam consumido à beira do Sena. Era impossível que a vida tomasse rumo tão
diverso. Refleti no quanto Blanche não deveria ter enfrentado a todos com seu
filho, resistido àquele turbilhão de dúvidas que também me assaltava os passos.
Havia um sentido antagônico, minha loucura, por fim, tornava-se plena. Saturado
por aquele odor entorpecente, apoiei-me ao corrimão do segundo andar, e
descobri entreaberta a porta do apartamento das irmãs vietnamitas. Uma delas,
aquela que eu encontrara logo pela manhã, recostava-se à uma grande almofada de
cetim grená, brocada em dragões negros a vomitar labaredas de fogo. Ao seu
lado, um narguilê de ébano bordado em detalhes de marfim, deixava escapar no ar
um filete drogado de ilusão. Outra mulher, ainda mais velha, com cabelos ainda
mais brancos, longos e ralos, pitava o ópio deitada numa esteira de seda. Seus
gestos eram de delícia, apesar da velhice, seus olhos resistiam num misterioso
reflexo de sonhos. Olhava-me fixamente em silêncio, daquela nesga de porta, ela
invadia minha última fronteira sem qualquer pudor. Tal como meu pardal comendo
sementes de maçã na infância, sua imagem renovava minha esperança, revelava-me,
sem palavras, o quanto eu ainda tinha por viver e aprender.
Subi mais um lance de escadas e alcancei a porta de
casa. Ela guardava o retrato intacto da minha decadência desde a fuga pela
manhã. Ao cruzar renovado aquele portal, teria certamente pela frente uma longa batalha a travar comigo mesmo. Reorganizaria
papeis e sentimentos, selecionaria expectativas e retratos em uma nova fase da
vida. Talvez em breve, algum
amigo mandasse notícias, ou encontrasse um novo amor com
quem repartir os brotos verde-água quando despontar a primavera. Como o poeta
diante da folha branca, ansioso por cobri-la de versos simples e verdadeiros,
abri a porta e me deparei com tudo o que havia por fazer.
fim
O túnel
por Zé Peixoto, all
rights reserved ©
E xiste um túnel na
estrada de ferro que liga Aguas Calientes à Machu Picchu. Nunca soube o seu
nome e provavelmente nunca o saberei. Ali ficou guardada a imagem da morte. Por
isso prefiro não lembrar como se chama.
A primeira vez que ouvi falar daquele túnel foi alguns anos antes, em
uma viajem de inverno a Amsterdã. Encontrei por acaso com Karlo perambulando
sozinho pela madrugada boêmia dos canais do Red Light, uma dessas coincidências
que ocorrem poucas vezes na vida. Karlo era um amigo de longa data e há muito
não nos víamos. A causa do frio decidimos ir a um coffee shop para botar a vida
em dia, relaxados por uma boa Manga Rosa paraguaia. Karlo sempre foi um sujeito
acostumado a viajar pelo mundo a procura de emoções novas, aventuras que o
tirassem da monotonia do confortável escritório de Ipanema, onde comercializava
jóias e pedras preciosas. Amsterdã e Cuzco haviam se tornado para ele passagens
obrigatórias, cidades onde costumava ir algumas vezes ao ano a caça de bons
negócios com diamantes, ouro e prata. Isso fazia parte de seu trabalho. Em
outras ocasiões já me havia falado da fascinação que lhe despertava a mítica
cidade peruana, como bom aventureiro sempre que havia uma oportunidade acabava
embrenhado pelos povoados, trilhas e ruínas Incas que fazem de Cuzco uma cidade
cercada de magia e mistério. E foi assim que me falou daquele túnel, um lugar
necessário, uma passagem mística e preparatória para se chegar com serenidade à
colina sagrada de Machu Picchu. A profunda escuridão dentro do túnel era uma
forma de penetrar a alma e limpar o espírito, libertar os rancores do coração
para poder reconhecer o limbo nunca visto nas trevas. Nunca!
É sempre difícil perceber o momento em que uma experiência
transcendental se inicia. Em geral, apenas nos damos conta de que ela existe
quando já é demasiado tarde e já não podemos escapar do que provoca. É foi
exatamente isso o que me aconteceu quando entrei naquele túnel. Avancei passo a
passo, de maneira quase inconsciente. Sem medir as conseqüências do
desconhecido penetrei um universo de mistério, entorpecido por uma exploração
progressiva que me despertava a necessidade vital de uma inspeção cautelosa.
Prossegui sem chance de identificar qualquer referencia concreta de onde
estava, e de quando encontraria o portal para minha purificação espiritual. E quando
me lembrei de parar por um instante, e de olhar para trás, já havia
ultrapassado o limite de poder voltar. Tudo se transformou em algo difuso e
distante, só me restava seguir em frente. Talvez seja o medo o que nos emudece
nessas horas, as palavras se tornam
vazias e desprovidas de sentido. É no barulho dos passos espalhando cristalino
a água empoçada que goteja pela rocha, que se descobre a ânsia da fuga, não nas
palavras, capazes apenas de expressar a diversidade de sensações que afloram da
escuridão. O caminho era lúgubre, aos poucos se diluía a noção de espaço. Os
pés desapareciam, meu rosto perdia identidade, tudo virava vazio. Revelou-se
por inteiro a ameaça de nunca mais poder encontrar uma saída. A partir daí a
luz do mundo se escondeu por completo. É neste ponto onde vive a morte.
Coisas curiosas começaram a acontecer. O próprio tempo parecia não
respeitar mais suas regras. Não sei como voltei ao passado, transportei-me para
muito longe dali, a um outro continente, Paris, um lugar próximo à Maison de la Radio. Gilles Dancourt
está comigo e procuramos a entrada de um túnel desativado do metrô, onde
pretendemos rodar uma cena do filme que Gilles está preparando sobre a ocupação
nazista da capital francesa. Na entrada do túnel uma placa adverte: “interdit
au passage”. É perfeito para o que queremos. O caminho estava aberto.
A perseguição aos membros da resistência francesa avançava madrugada
adentro. Durante todo o dia vários trabalhadores ligados às centrais comunistas
foram mortos. à queima roupa. e muita gente também foi presa pelos arredores de
Paris. Cartazes foram espalhados por toda a cidade incentivando a delação.
Nestas horas, a ideologia de um homem pode não resistir às torturas
alemãs. Alguém submetido a
interrogatório havia confessado aos oficiais da Gestapo o endereço daquele
esconderijo.
É alta madrugada e um comboio alemão cerca as saídas do túnel. Os homens
de Hitler baixam dos caminhões com a determinação de aniquilar tudo o que
coloque em risco a hegemonia do Reich. Marcham como autômatos em mais uma
operação sanguinária, avançam com suas botas assassinas para desmantelar outro
reduto da resistência. O assalto é rápido, massacre relâmpago. Dois homens e
uma mulher são fuzilados com uma única rajada de metralhadora. Um outro homem
tenta escapar pelo túnel, mas também é atingido e cai agonizando iluminado pelo
refletor de um dos caminhões. Alguns
documentos e papéis com mensagens cifradas são vasculhados nos corpos crivados
de balas. Uma maleta com aparelhagem de rádio é embebida por querosene e
incinerada junto com os três cadáveres. Tudo é recolhido cuidadosamente em nome
do Fuher. Arrastado pelos pés
por dois soldados, o corpo da quarta vitima e levado para fora do túnel e atado
com cordas a um poste de iluminação. Ensopado de sangue libertário francês, sua
identidade permanecerá aí exposta como exemplo da superioridade alemã, Para que
todos saibam quem dita as ordens na França ocupada, os dominadores do Reich
precisam seguir com a limpeza ideológica de Paris, uma cidade mergulhada na
humilhação e no terror.
Volto a viver no presente, experimento o medo visceral de pisar em
cadáveres, corpos mutilados pela história que talvez também tenham sido
abandonados no interior do túnel de Águas Calientes. As Américas foram igualmente palco de grandes
extermínios, tantos índios
trucidados pela cobiça do
ouro, tantas mortes inocentes e
silenciosas, o genocídio em nome “de Dios y del Rey”. Vejo o massacre de todo
um continente guardado na escuridão mórbida de minha travessia agonizante por
aquele túnel.
Sinto que existe alguma coisa em mim que está mudando. Karlo tinha razão
quanto ao túnel, aqui posso rever o interior do meu corpo, meu sangue correndo
pelas veias, minhas angústias milenares, tanta coisa que deixei adormecida no
fundo do meu verdadeiro poço existencial. Estou no útero da minha segunda
gestação, e mal consigo imaginar que isto é apenas um ritual de passagem. Tudo
ganha uma dimensão eterna. Purificação. Estou repleto de emoções não lógicas,
impulsos que me atiram em passos mais lentos a cada fração de segundo. Preciso
caminhar sem pressa de alcançar a verdade, a verdade que agora descubro não
existir.
Volto outra vez no tempo, Roma, a Catacumba de Priscila. Fui ali visitar
a primeira madona pintada pela mão do homem. Nosso grupo é guiado por uma
freira que me parece já estar morta, penso que talvez seja a mãe-guardiã de
todas as catacumbas. Ela nos pede que tenhamos cuidado, conhece cada metro
daquele labirinto de atalhos e galerias subterrâneas. Perder-se do resto do
grupo pode significar a morte. Descubro que durante a Segunda Guerra, os
nazistas também estiveram por ali.
Alicates, charutos, pinças, tonéis que afogam, o positivo e o negativo
em curtos elétrico-cerebrais, urros que trazem informações preciosas, de novo a
barbárie dos soldados alemães.
Decido parar por alguns instantes e acabo me afastando dos demais.
Jamais havia experimentado uma sensação tão nítida de pânico. Minha solidão percebe com voracidade a
presença da morte naqueles esqueletos inteiros, com ossos partidos e crânios
idênticos ao meu, restos esquecidos em nichos abertos há séculos e abandonados
pela historia. Era como se os espíritos de todos aqueles corpos gritassem
uníssonos os horrores daquela imensa morada das trevas.
Não consigo entender a relação dessas lembranças com minha ida à Machu
Picchu. Já não mergulhei o suficiente no meu passado? O que falta decifrar na
escuridão com todas aquelas imagens que me dilaceravam? O que ainda falta
inspecionar na memória para alcançar a saída daquele túnel? A resposta veio sonora,
reverberada pelo apito de um trem. O tempo presente correu como uma locomotiva
pronta a me ignorar ali dentro e a passar inclemente por cima de mim. Comecei a
correr em direção à luz. Corria sem
passado, sem memória, meus remorsos desfeitos, acéfalo em uma luta desenfreada
contra meus próprios limites. Era preciso alcançar a saída mais rápido que a
existência do trem.
Foi uma prova árdua conseguir sair do túnel. Tive que me superar para escapar da morte e
poder chegar ao exterior com vida. Talvez, fosse isso o que naquela madrugada em Amsterdã Karlo
chamava de passagem. Eu havia conseguido cruzar o medo da destruição, estava
pronto para visitar as ruínas da cidade das virgens Incas.
Preciso documentar esse momento único, a locomotiva e os vagões dos
Ferrocarriles se desvelam majestosos à luz do dia, imponentes na força de
milhares de cavalos que galopam potentes para fora da escuridão. Pego minha
câmera Super-8 e vejo pelo visor a imagem do trem, agora um trem sem ameaças,
apenas um trem seguindo viagem.
Sempre acreditei nas imagens como provas capazes de nos fazer respirar o
tempo perdido. Uma fotografia sempre rouba à luz do presente aquilo que mais
tarde serão nossas lembranças. Foi pensando assim que vi surgir meu carrasco,
um assassino potencial pendurado do lado de fora do trem, a perna esticada para
atingir minha cabeça ali mesmo a beira do caminho, escondido por trás de uma
câmera Super-8. Calçava botas de exército, parecidas a dos soldados de Hitler
aniquilando vidas no túnel de Paris. Era inacreditável que tivesse realmente a
intenção de matar-me. Mas era real. Sorria como um nazista, seus olhos reluziam a monstruosidade da
genética ariana como se contabilizassem judeus a caminho das câmaras de gás.
Tenho certeza de que seu verdadeiro prazer seria ver meu corpo sem vida
estirado junto aos trillhos.
Tive tempo apenas de me jogar para fora da estrada de ferro. Rolei
alguns metros com a câmera agarrada contra o corpo, sem pensar em nada mais que
não fosse garantir a imagem da morte, aquele jovem hitlerista, sua perna
retesada com a bota, seu olhar frio e assassino.
Demorei bastante até me recuperar. Como podia ter acontecido tudo
aquilo? Um atentado gratuito, um
gesto brutal capaz de em fração de segundos me jogar de volta ao túnel, à
Segunda Guerra, às catacumbas de Roma com seus esqueletos torturados e
recobertos de pó. Se naquele instante eu tivesse morrido, certamente cairia nas
trevas da incompreensão, sem nenhuma justificativa, nada que elevasse meu
espírito em bondade, em luz ou em sabedoria. Levaria comigo apenas a revolta dos
infernos, contorcido pela dor de um chute mortal no meio da cara, certeiro ao
ponto de me arrancar o cérebro espalhado em dezenas de pedaços, fragmentos de
um pesadelo incapaz sequer de relevar a ncessidade de uma vingança.
*
Eu sabia que chegaria até ali algum dia. Afinal aquele lugar era parte
do meu destino. Algumas vezes tenho esta sensação de estar predestinado a
certas passagens na vida. Cenários, cheiros, cores. Acabo identificando estes
momentos como partes de mim mesmo. Mas nem por isso perco a surpresa dos
descobrimentos. Tudo me surge com uma membrana de vida familiar, reminiscências
de um passado que sinto fazer parte de minha história nessa existência. Era
isso o que eu sentia em relação àquele homem, ao meu assassino pendurado do
lado de fora do trem. Ele era uma referência viva, o foco de uma obstinação que
a partir de agora me colocava ao seu encalço. Era a o meu assassino, apesar de
eu ainda estar vivo. Talvez eu também tentasse matá-lo, frente a frente, sem
armas. Arrancaria com minhas próprias mãos o seu coração de pedra, e o lançaria
ainda quente e latejando em uma pocilga cheia de porcos famintos. Depois me
lavaria as mãos ensopadas de sangue, e com deleite me livraria de qualquer
traço de culpa, assim como Pilatos se redimiu pela morte de Cristo.
Não podia escapar daquele desafio. Precisava redefinir aquele rosto,
remontar seus gestos, a linha da boca, o
traçado dos olhos, a cor dos cabelos, a roupa e o lustrado da maldita bota
militar. Ela sim, se havia convertido no centro do universo, foco único e
indivisível que podia ter me atingido certeira num óbito frontal. Cada detalhe
precisava ser recomposto, engendrado logicamente na recriação do nazista
assassino, aquele homem que eu poderia reencontrar a qualquer momento.
*
O sol ainda não estava alto quando cheguei às ruínas. Uma película
dourada roçava as milhares de pedras encaixadas milimetricamente nos muros das
casas, nos terraços de cultivo, nas alamedas magistrais, nos enormes pátios da
cidadela de Machu Picchu. Minha primeira impressão foi de que tudo aquilo
sempre esteve assim, imutável, realizado com perfeição pela mão de Deus e
depois abandonado intacto para que a humanidade pudesse admirar a maestria de
uma grande obra do Criador. Na cidadela
os homens e as mulheres não foram criados a partir do barro, e sim da pedra.
Pedras enormes, de vários formatos, com ângulos astronômicos, pontas e vértices
polidos com a insistência de apontar em direção às estrelas para descobrir algo
mais sobre a vida. Nada parece estar ali por acaso. Nem mesmo a grama, de um
verde tão puro como jamais havia encontrado em qualquer outro lugar do mundo.
São gramados imensos, muitos deles na forma de jardins suspensos em escadarias
que remontam aos primórdios do céu. Como num quadro emoldurado pelo tempo vou
desenhando cada detalhe. Diluem-se os traços que me prendiam ao passado em
tempos de trevas, túneis assustadores, trens da morte e botas assassinas. Vejo
agora as cores vivas de um presente composto pela remissão de todos os pecados,
os meus e os de toda a humanidade. Começo então a caminhar envolto na luz de um
novo mundo. Levanto as âncoras que ainda me prendiam ao inferno e abro velas,
limpas e alvas, estufadas por uma brisa suave que me arrasta pelo mar de uma
nova consciência. Este novo homem ainda não tem nome, acabou de nascer. Ainda
navega pelo desconhecido de si mesmo, recém saído do fundo calcinado da terra,
pasmo com a simplicidade e a beleza de cada sombra na cidade das virgens Incas.
O coração também parece novo, pronto a se abrir embalado por um ritmo inédito
sem trancas, desprovido do rancor e da maleficência que bordam a vingança. Aos
poucos descubro meus novos dedos, minhas mãos intocáveis, os pêlos alguns já
brancos no peito onde o coração ganha um compasso maduro, convicto de que a
mudança chega com a carga dos deuses e de seus mil trovões. É como se um filtro
me purificasse o sangue e me oxigenasse o cérebro numa leitura inédita de mim
mesmo.
O sol atravessou meus passos e me deflagrou a pino nos Andes. Estou no
alto do Laboratório Astronômico, de onde posso ter uma visão ampla de toda a
cidade. Sinto-me no centro do céu, carta estelar aberta sobre a história. Meu
olhar vasculha como bússola. Meus ouvidos parecem sensíveis ao mais ínfimo dos
ruídos. Meus gestos parecem congelados diante daquele palco de história, onde a
cena viva faz que transbordem meus instantes de verdade, minha única
verdade. Foi neste momento de sintonia
cósmica e através do perdão, que matei definitivamente meu assassino na
memória. Nós dois agora estávamos livres para sempre.
*
Quando voltei para casa revelei todas as bobinas de super-8 que havia
rodado, inclusive aquela do trem saindo do túnel com a bota nazista. Durante
muito tempo não tive coragem de me enfrentar com a revelação do que ali estava
guardado. Receava que depois do meu regresso de Machu Picchu não fosse forte o
bastante para continuar perdoando aquele gesto que podia ter acabado com a
minha vida. Aquele filme se tornou para
mim uma sagrada proibição.
Porém, uma noite, meses mais tarde, minha solidão chegou carregada de
coragem, ávida por retirar o manto que ainda insistia em recobrir aquele corpo
e impedir que a imagem do meu assassino se convertesse em razão. Desliguei
as luzes da sala e mergulhei naquelas imagens. Lá estava o trem saindo do
túnel, na proporção exata do que eu havia vivido. Mas aquele trem transportava
uma verdade nova, e essa verdade voltava a me atingir em cheio na cabeça, outra
vez com a potência de uma locomotiva impiedosa, incapaz de evitar o nascimento
de um novo enigma na minha vida. Aquele trem que durante tantos meses carregou
a imagem vida da minha morte, agora se aproximava vazio, sem ninguém do lado de
fora, nenhum corpo de homem, nenhuma bota mortífera, nada. A alma gêmea dos
assassinos nazistas do túnel de Paris, transformados naquele jovem pendurado
com a perna de fora em Águas Calientes, nunca existiram. Tudo foi apenas uma
miragem, uma vertigem de Machu Picchu para que eu aprendesse o verdadeiro
sentido da palavra perdão.
fim
Ligação de carnaval
por Zé Peixoto, all
rights reserved ©
Os amigos são
fonte de algumas preocupações na vida. Por isso mesmo são amigos. Não fossem
esses momentos em que nos colocamos a serviço da amizade, o texto da vida seria
o de uma enorme cena vazia. Sem novidades. Nada que nos assegurasse, a cada
dia, o surgimento de um novo homem. Acredito que precisamos nascer todos os
dias. A cada segundo. A cada vez que o telefone toca.
São onze da
noite. Já poderia estar dormindo, mas a folia me espantou o sono. Na televisão,
o carnaval desfila alegorias de avenida, mulatas nuas, passistas, gente
realizando sonhos ao ritmo de frenéticas baterias. O mundo inteiro é carnaval.
Menos aqui. Sou apenas um espectador distante, submerso pela emoção de um
gingado e o canto triste de uma cuíca.
Toca o telefone.
É Lúcia. Quer saber do marido. Flávio já devia ter chegado. Saiu de carro, às
quatro e meia de São Paulo, com destino ao Rio. E até agora nenhuma notícia.
Começo a ponderar. Quero saber fatos, referências. Um Fiat Uno azul. Mais três
outras pessoas, amigos que Lúcia não consegue precisar os nomes, nem a vida,
nem detalhes. O porteiro do prédio viu tudo quando Flávio saiu de madrugada.
Fujo de quebrar
minha cabeça no carnaval. Ainda mais depois
que descobri, definitiva e irremediavelmente, não ser um típico folião.
Aproveito os quatro dias para não pensar em nada. É a sensação de estar debaixo
d’água. Mergulho num mundo sem interferências, onde só contemplo fatos e não
preciso pensar. Não é nada mal viver no fundo do mar. Os pensamentos
tão somente existem. Afogam-se as ponderações.
Eu sempre soube
que estava pronto para atender àquele telefone. Seria um simples telefonema,
carregado de preocupação, é claro, mas apenas um telefone. A qualquer instante
que viesse. Mas não durante o carnaval. Afinal, eu era um peixe. Só que Lúcia
jamais aceitaria isso. Não havia outra saída, não podia mais continuar imerso e ignorar
o desaparecimento de um amigo. Fui obrigado a vir à tona e aceitar resignado
minha metamorfose em gente.
Lúcia pedia que
eu a ajudasse. Uma viagem de cinco horas
em mais de dezesete. Alguma coisa devia ter acontecido. Mas o que? Uma série de situações hipotéticas me
oxigena os pulmões. Minha vida de peixe já era passado. Preciso remontar meu
lado humano, pouco a pouco, uma arquitetura de sensações das quais não me é
possível prever encaixes, conexões lógicas, explicações sobre que tipo de
pessoa estou me tornando naquele exato momento. Sei apenas que as escolas de
samba na tv precisam acabar. Decido desligar os tamborins.
Talvez um dia
ainda consiga me tornar dessa pessoas imediatas, capazes de agir diante das
situações com a destreza de um reflexo condicionado. Fico sempre meio fora do
ar nessas horas. Preciso de tempo para organizar as idéias. Junto fatos,
identifico caminhos. Só daí começo a montagem de uma estória. E não podia ser
diferente. Desliguei o telefone. Pedi à Lúcia uns minutos para pensar. Voltava
a ligar em seguida.
Demorei dez
minutos. Não mais que isso. Lúcia parecia ainda mais nervosa. Tomei nota do que
já havia sido feito. Anjos do asfalto. Polícia Rodoviária Federal, Estadual.
Bombeiros. Nada. Nenhuma ocorrência envolvendo o Fiat, os passageiros sem rosto
e meu amigo. E se tivesse acontecido na cidade? Perímetro urbano. Abria-se um
leque de novas possibilidades. Esse era o nosso novo trajeto. Lúcia ligaria em São Paulo. Eu no
Rio. Meu carnaval começava um desfile telefônico
por hospitais públicos, delegacias, bombeiros...
São números que
não atendem. Vários deles. Preciso de notícias, mas o mundo insiste em
permanecer calado. Ninguém é capaz de uma única palavra, só vazio. Sem pistas. Traço zero. É a
morte traduzida em silêncio, um silêncio
capaz de me sugar sensações adormecidas, de
retirar do fundo do oceano recordações tão dolorosas de saudade. É a dor
que me obriga a tomar consciência do abandono. A mesma dor que retrata o
descaso no qual vivemos. Diante do fantasma da morte, é que essas conclusões
tornam-se ainda mais cruéis.
O carro saiu da
pista e mergulhou numa ribanceira. Enquanto abasteciam, foram sequestrados por
um bando de homens encapuçados. Decidiram vir por Santos. Talvez uma cama de
motel presenciasse tudo.
E a morte de meu
pai? O que ele tem a ver com tudo isso? Por que enquanto permaneço grudado ao
telefone, ele entra morto em minha casa, senta-se no sofá e me observa em silêncio? A
película já corre solta pela bobina. Um filme montado com cenas absolutamente
imprevisíveis, e do qual, a partir
daquele instante eu também faço parte.
Com meu pai foi
assim. A morte chegou fria pela telefone. A morte se presta a estas coisas.
Minha mãe do outro lado da linha, meio morta também, a voz seca num tiro
certeiro em direção ao meu peito. O coração resistiu ao choque mas nunca
voltará a ser o mesmo. A ferida da morte de um pai não cicatriza.
Consigo falar
com os bombeiros. O médico de plantão está dormindo. Nomes, só amanhã de manhã.
Mais dois hospitais. No primeiro, o telefone de informações não atende. A
mulher do PABX compreende minha apreensão. Minha indignaçào é justa. Mas não
pode fazer nada. No outro, Flávio Machado Ferreira não consta. Ao menos alí eu
sabia que ele não estava.
Havia um certo
ar de deboche em meu pai. Os mortos também são capazes disso. Me olhava de
cima, assim como imaginamos a visita dos espíritos. Seu olhar me desnudava como
se eu ainda fosse uma criança. É que para ele o tempo não fazia mais diferença.
Talvez por isso demonstrasse tanta ironia, vendo-me transpirar impaciente a
contagem de cada minuto pendurado ao telefone. Ele podia caminhar livre pela
eternidade.
Fui bastante
forte, capaz de concluir uma pausa na estória. Não adiantava nada continuar
alí, preso ao telefone. Talvez, fosse isso mesmo o que meu pai queria me dizer.
Certamente era isso. Era melhor ligar para
São Paulo. Contei à Lúcia sobre cada tentativa, sobre o silêncio, as
chamadas intermináveis, o sono desleixado do médico, a PABX lamentando, a lista
sem Flávio. Esperaríamos que amanhecesse. Esse era o limite do possível.
Antes de dormir
vistoriei cada canto da casa. Ele tinha ido embora. Meu pai havia morrido outra
vez. Só que agora diferente. Deixara gravado
um sorriso debochado na minha memória, bem diferente do retrato pálido
que guardara ao fecharem a tampa de sua urna. Já sentia saudades. Descobri
também que as plantas estavam secas, algumas quase já mortas. Plantas secas
guardam tristesa. São um passado sem vida. Fiquei três dias mergulhado como
peixe e me esqueci completamente delas. Precisava molhá-las. Mas já era tarde. Não podia contornar a aridez
daquela falha tão imperdoável.
Foi uma
madrugada difícil, econômica. Não consigo precisar por quanto tempo mergulhei
em sono profundo. Minha cama é pequena demais para todas as angústias que tinha
acumulado.
Revela-se a
primeira imagem de um sonho. Estou num quarto a meia luz, próximo de uma janela
onde posso ver o mar, o mesmo mar do qual emergi às pressas para decifrar a
vida de um amigo. Golfinhos nadam próximo à areia da praia. Em seguida, uma
mulher nua entra no quarto. Tem dentes afiados. Ela se aproxima com o furor de
um gozo imediato, ato carnal, a boca engolindo meu sexo na sofreguidão do
desejo insaciável. Posso sentir a morte em seus dentes. Preciso fugir. Por que
não posso abrir a porta? Continuo no mesmo quarto, próximo da mesma janela. Mas
desta vez não consigo mais ver o mar. O mar secou numa triste melodia. E aquele
velho de costas, num terno preto, pés descalços? É meu avô. Ele olha pela
janela um deserto de areia, da mesma areia que um dia já foi o chão do meu mar.
E chora. Por que balança com a mão um pedaço de carne fresca? É a morte outra
vez, simbolizada antes da última imagem.
Corro. Desço escadas no escuro. Tenho muita pressa, não posso parar. Preciso
chegar logo à rua e me livrar de uma vez por todas do medo da morte. As
calçadas estão desertas. Uma brisa quente corta a madrugada. Talvez sejam
corpos mutilados, aqueles blocos de sangue retorcidos nas ferragens de um
carro. Um Fiat Uno em preto e branco. Nunca terei certeza. Pois a verdade é que
permaneci de longe. Não tive coragem de ver de perto aqueles restos, de
identificar num relógio, numa aliança, num documento achado no bolso, o corpo
de um grande amigo. Acordei ensopado de terror.
Não posso
colocar nada no estômago. Minha cabeça está cheia demais e talvez tudo
transborde. Caminhar é um bom recomeço.
Tenho sorte. O
sol ainda não nasceu. Posso esconder meus mêdos por mais algum tempo. Nada tão
longo que comprometa um ciclo completo em mim mesmo, assim como o próprio sol
que nasce inevitável dentro deste mesmo mar. São tantas pessoas, estórias de
tantas festas que tiveram que acabar. O carnaval começa a dormir para que o
mundo acorde.
O sol nasceu
como uma bofetada, o sol de todos os dias, tão sol como ontem, quem sabe o
mesmo sol que a partir de hoje Flávio nunca mais possa ver. Subia magestoso,
embalado na hipótese de mais uma morte, entre tantas que venho me acostumando a
chorar desde que percebi a mecânica da vida. O nascer do sol, assim como as
crianças, nos dão esta sensação de fragilidade, reflexo de um fim inevitável,
que por capricho um dia ainda poderá ser eterno, assim como meu pai. Preciso
encarar os fatos. O sol já subiu além do horizonte suportável.
Voltei para
casa. A estória de Flávio não se sustentaria por muito mais tempo. Precisava
acabar em um telefonema. Talvez, propositalmente, a noite tenha contribuído
para que não se estendesse demais em sofrimento. O
telefone toca. Nada.
Silêncio de adrenalina numa coincidência
telefônica qualquer. Despejo novamente minhas fantasias, trajes de um folião
apático, outra vez frente a frente com o meu destino abissal. O telefone volta
a tocar. Talvez eu não seja tão forte assim. Mas preciso ser definitivo. Alguém
fala. É Flávio, amigo bastante para que eu não procure por detalhes, nem
desculpas, nem mais nada que espelhe seu retrato. Ele está vivo.
De fato, numa
quarta-feira de cinzas vale a pena refletir sobre a vida, sobre a festa que
passou, o lixo espalhado nas ruas, o vazio das avenidas, os cardumes se
afastando para bem longe no mar. Muita
gente morreu nas estradas. Muita gente morre todos os dias. É diante da morte,
contabilizada nas manchetes de jornal, que tantas pessoas como eu, devem hoje
estar sofrendo a perda de um amigo. Ainda bem que não preciso revolver das
cinzas minha tristesa. Mais tarde pego o telefone e ligo para o Flávio.
Precisamos tomar um chope e comemorar a vida. Aproveito e agradeço a ele o
conforto de não ter que chorar.
fim
fim