segunda-feira, julho 05, 2010

O RESTAURADOR

Aqui vivem cupins e traças
nutridos por séculos de biografia oculta.
A serragem se acumula pelos quatro cantos
feito poeira de ossos talhados de troncos
sem jazigo num cemitério de móveis por remendar.

Pelas esquinas abarrotadas de trastos,
escondem-se pontas carburadas de boa erva,
e pedaços ressecados de papel higiênico
consumidos pelo sofrego limite da razão.
São delírios solitários e punhetas sem consolo.

Estéfano é um homem reto e plano,
sobrevive do oficio de restaurar abandonos
enquanto segue buscando um verdadeiro amor.
As mulheres já foram tantas
que as casas montadas e desmontadas de esperança
poderiam encher os salões de Versailles.

A cada desilusão mais trabalho.
Talvez para encher o vazio da cama
e compensar a fome insolente,
palitando os dentes desleixados na mesa sem toalha.

As roupas manchadas, esgarçadas e sem botões
alertam que as restaurações precisam ser perfeitas.

É que Estéfano tem somente pra mastigar
um dente de ouro por cada amor fracassado.
E quando sorri por engano,
magoado pela afeição morta do seu coração de lenha,
a boca brilha mais que o sol ardente do deserto
e seus olhos apagados reluzem noite de lua nova.

Mesas, camas, armários, cadeiras,
serrotes, chaves, lixas, alicates,
martelos, plainas, pregos e parafusos,
enchem o tempo esperando um novo amor,
enquanto pela radio coberta de pó
acompanha uma partida qualquer de futebol.

AP7

A península escapa ressentida pela AP7,
se esfrega úmida pelo asfalto ensanguentado de dramas.
São vidas que temperam a miscelânea moderna
de uma índole sem fisionomia, nem salvaguarda.

Nas filas acavaladas dos pedágios automáticos,
juntam-se ruídos distintos de destinos sem interseção.
Roncam mais forte os motores envenenados pela potencia capital,
típicos do norte frio de emoção e paciência civilizada.
Parecem agonizar os remendados pela carência migratória,
com olhares arregalados e um silêncio submisso.
Somam-se outros mais, suspeitosos de atos ilícitos,
caminhões abarrotados de comércio limpo e urgente,
e caravanas displicentes de turistas ingênuos e gordurosos.

No carro de família, todo recauchutado,
a prole marroquina quase salta pela janela.
Não há espaço livre para agonizar
sequer uma última saudade da terra natal.

O esportivo negro conversível
exala a última fragrância fashion de Paris.
Acercada ao retrovisor cromado,
num sutil retoque de maquiagem,
a loura russa se reflete ardilosa ao volante.

Ainda que sob o manto do trabalho,
as linhas brancas na cabina do caminhão
sucumbem ao rigor da tarjeta de credito
enfiando mais um tiro de cocaína.

O aventureiro cigano, abarrotado de pulseiras de ouro
cantarola flamenco com a mulher prenha marcando palmas.
No banco detrás, sonhando com a torradeira andaluza,
a sogra vestida em luto eterno
descasca um pêssego com canivete.

Seriam tantos outros retratos indivisíveis
à espera de que a cancela se abra,
que as almas lacradas da AP7 resultariam poucas.
Talvez os marroquinos, a russa,
a cocaína, os ciganos e os turistas do norte
jamais cheguem aos seus destinos.

EXTRA

Queria ser livre,
repicar vozes de um interno obscuro.
Desejava recuperar vértices aparados de consciência
que o silêncio talha em omissão.

Acreditava no seu próprio espírito
liberto das demais pessoas.
Não conjugava mais a primeira voz
do exato verbo existir.

Na angustia da solidão desamparada
declinava medos e dúvidas turvas,
ressonando outras vozes
sem saber o tom daquilo que era próprio.

Ser conciso não lhe tocava.
Teve roubada a métrica que permitia a oração perfeita.

Hoje, foge de espaços impessoais,
dessas imposições aceleradas que passam pelas vistas,
quando tudo é neblina,
fluido em membranas glaucômicas
com senso de não transparência.

É boca calada.
Se toca o telefone não é para ele.
Os oceanos se afastam daquilo que foi porto,
e enormes ondas vorazes
tragam seus instintos em sulcos abismais.

Na caixa do correio
busca com a ponta enrugada dos dedos
o vazio de notícias que vivem submersas
entre corais afiados em mutação de vida.

Quer gritar, mas está morto!

O GENOVÊS

Nunca rastejou no encalce de bandido.
Era capo puro sangue genovês,
investigador de ouro da polícia de elite.

Com olfato fidalgo de caçador perdigueiro,
traçava de memória pista por pista
e cantava chave certeira sempre ao final.

Menino, já escapulia de emboscada
na rixa fratricídio entre vermelhos e fascistas.

Aprendeu a contar com eco de rajada
e a gostar de sexo, cuspindo em buraco de bala.
Com ricochetes assoviando pedra,
trocou de voz saltando poças de sangue
e secou lágrimas sem nunca saber chorar.
Compreendeu também porque em combate
a morte sabe sempre a gosto macho.
Viu fenecer o pai, os tios e o irmão mais velho
com o fardo amargo de sobreviver varão.

Pelas fúnebres vielas da Ligúria em pé de guerra,
sabia o sobrenome e o dialeto de cada desgraça.
Já não confiava mais na justiça de Deus
nem tão pouco no vômito dos homens,
mijando artilharia do alto dos campanários.

Bala jamais lhe passou rente à cabeça
a deixar zonzo o tímpano assustado.
Nem sacou pistola, nem matou bandoleiro
sem ditar justiça com o próprio gatilho.

Esmiuçava cada delito indecifrado
com alma detalhada de artífice,
com tal obsessão milimétrica
que buscava ciência em poeira,
lupa, microscópio e neurônios,
afiados como única munição contra o destino.

Com o cansar inevitável dos anos,
buscou no sorriso com meio dente,
graça na desgraça dos ossos do ofício.
Tricotava ingênuo mitos de bandidos e mocinhos
estirado no tapete felpudo da sala,
babado de açúcar pelos netos,
mimado pelo pastor e pelo gato,
como se as primaveras não estivessem gastadas
e fosse ainda metade grande
e metade moleque travesso.

A família sim, tinha moldura especial de ouro,
muito mais que as medalhas e comendas
arrebatadas por honra ao mérito
e guardadas numa velha caixa de sapatos.