segunda-feira, julho 05, 2010

AP7

A península escapa ressentida pela AP7,
se esfrega úmida pelo asfalto ensanguentado de dramas.
São vidas que temperam a miscelânea moderna
de uma índole sem fisionomia, nem salvaguarda.

Nas filas acavaladas dos pedágios automáticos,
juntam-se ruídos distintos de destinos sem interseção.
Roncam mais forte os motores envenenados pela potencia capital,
típicos do norte frio de emoção e paciência civilizada.
Parecem agonizar os remendados pela carência migratória,
com olhares arregalados e um silêncio submisso.
Somam-se outros mais, suspeitosos de atos ilícitos,
caminhões abarrotados de comércio limpo e urgente,
e caravanas displicentes de turistas ingênuos e gordurosos.

No carro de família, todo recauchutado,
a prole marroquina quase salta pela janela.
Não há espaço livre para agonizar
sequer uma última saudade da terra natal.

O esportivo negro conversível
exala a última fragrância fashion de Paris.
Acercada ao retrovisor cromado,
num sutil retoque de maquiagem,
a loura russa se reflete ardilosa ao volante.

Ainda que sob o manto do trabalho,
as linhas brancas na cabina do caminhão
sucumbem ao rigor da tarjeta de credito
enfiando mais um tiro de cocaína.

O aventureiro cigano, abarrotado de pulseiras de ouro
cantarola flamenco com a mulher prenha marcando palmas.
No banco detrás, sonhando com a torradeira andaluza,
a sogra vestida em luto eterno
descasca um pêssego com canivete.

Seriam tantos outros retratos indivisíveis
à espera de que a cancela se abra,
que as almas lacradas da AP7 resultariam poucas.
Talvez os marroquinos, a russa,
a cocaína, os ciganos e os turistas do norte
jamais cheguem aos seus destinos.