As horas passam brancas pela cabeça
com varizes alfinetando a memória vazia.
Já não tem nome,
nem maquina planos,
nem conversa com o espelho,
só silencio trancado com sabor de pó.
O relógio da sala empacou de repente,
petrificou às 5 e pouco da manha.
Sem alarde de ponto final,
enfadou por tanta velhice amassada
numa vida com clausura de gaveta.
Ela também despertou mais cedo.
Não trocou de roupa e nem lavou a cara,
se arrastou com descaso à cozinha
e enganou o café sem tocar em nada.
Sentou no vaso e rezou uma Salve Rainha oca.
Mastigou o plástico do falso rosário,
implorando aos intestinos e às lombrigas aéreas
que ao menos elas dessem sinal de vida.
Como nem merda mais havia
buscou remédio em despedir-se do dia-a-dia.
Beijou as plantas com rego farto,
rabiscou a página da folhinha,
bebeu a água do copo de dentadura,
tirou as pilhas do rádio,
chutou uma barata morta,
escarrou no capacho da porta,
e ganhou a rua deixando a chave dentro.
Caminhou pelo asfalto feito sombra,
articulando seus ossos, de quase farinha,
em passos peregrinos montanha acima,
lá onde dizem que começa o céu.
Pelos cabelos ralos sopravam ventos de outubro.
Os pés descalços, com unhas encravadas de frio,
e as mãos úmidas por um medo que não via,
eram os espigões de um iceberg humano
seguro de que a salvação sempre chega junto com o sol.
Com a boca seca de solidão
recitou o nome de cada filho parido,
relembrou o apelido do padeiro,
o aniversário e o dia de santo do padre,
a morte do marido na guerra,
e o dia vazio de ontem,
olhando a montanha pela janela do quarto.
O primeiro farol veio feito luz divina,
bailando sinuoso pela estrada orvalhada,
e com cheiro de borracha queimada
resvalou ao borde de um mergulho precipício.
O segundo, o terceiro e o quarto,
e todos os demais,
nem se deram conta de que existia,
até que por sorte,
um golpe de ruído seco sem freada
lançou suas ancas em direção a Deus
e recolheu seu crânio numa poça de lágrimas vermelhas.
Horas mais tarde,
rodeada à pino por vizinhos, comandos e fofoqueiros,
despertou com a sirene afiada do rabecão
e o mexerico do boletim de ocorrência.
Viu desde o tártaro dos anjos expulsados
a graça de seu gesto mais original.
Por trás de dedos de látex,
revistando debaixo do lençol decorado de carmim,
guardava na boca enrugada e murcha
um desbotado sorriso com farpas de festa.